segunda-feira, 18 de outubro de 2021

Bomba-d’água

Como a água chega à floresta? Ou, fazendo uma pergunta ainda mais básica, como a água chega ao solo?
Por mais que a pergunta pareça simples, a princípio a resposta é complicada, pois uma das características básicas da terra é estar em uma altitude mais elevada que o mar. Pelo efeito da gravidade, a água sempre flui para o ponto mais baixo. Se essa fosse a única força atuando, os continentes ficariam completamente secos. No entanto, esse efeito é evitado pelas nuvens, que se formam sobre o mar, são empurradas para o continente pelo vento e fornecem um suprimento de água contínuo para regiões mais distantes da costa – mecanismo que só funciona até algumas centenas de quilômetros do mar. Quanto mais nos embrenhamos pela terra firme, mais seco é o clima, porque a precipitação ocorre antes de chegar ao interior.
A cerca de 600 quilômetros da costa o clima fica tão seco que surgem os primeiros desertos. Se dependêssemos apenas desse mecanismo, a vida só seria possível em uma faixa estreita na borda dos continentes, e o interior seria árido e seco. Isso em tese. Na prática, por sorte, existem as florestas, uma forma de vegetação com a maior superfície coberta por folhas: para cada quilômetro quadrado de floresta há 27 quilômetros quadrados de folhas e agulhas nas copas, onde parte da precipitação é retida e evapora. Além disso, no verão as árvores precisam de até 2.500 metros cúbicos de água por quilômetro quadrado de folhas, volume que elas liberam no ar por meio da respiração. Essa evaporação forma novas nuvens, que se deslocam para o interior do continente e voltam à terra na forma de chuva. Esse ciclo continua de modo que as áreas mais distantes da costa também sejam abastecidas.
Essa “bomba d’água” funciona tão bem que, mesmo a milhares de quilômetros da costa, o volume de precipitação em muitas regiões grandes da Terra, como a Bacia Amazônica, não é tão diferente do da área costeira. Mas para isso há uma condição: que o caminho a partir da costa até o ponto mais distante seja coberto de florestas. Caso contrário o sistema não funciona.
Os cientistas atribuem essa descoberta fundamental a Anastassia Makarieva, do Instituto de Física Nuclear de São Petersburgo, na Rússia. Ela e seu grupo realizaram pesquisas em diferentes florestas espalhadas pelo mundo e chegaram sempre às mesmas conclusões: na floresta tropical ou na taiga siberiana, eram as árvores que transportavam a umidade necessária à vida para o interior do continente.
Também descobriram que o processo inteiro é interrompido quando as florestas costeiras são desmatadas. É como se alguém removesse os tubos de sucção de água de uma bomba elétrica. No Brasil, as consequências já começaram a surgir: o nível de umidade da Floresta Amazônica está cada vez mais baixo. A Europa Central, a cerca de 600 quilômetros da costa, ainda faz parte da área de alcance da bomba de sucção, e felizmente ainda existem florestas na região, apesar de sua área já ter diminuído bastante.
As florestas de coníferas do hemisfério Norte têm outra forma de influenciar o clima e o equilíbrio hídrico: exalando terpenos, substâncias que funcionam originalmente como proteção contra doenças e parasitas. Quando essas moléculas entram na atmosfera, concentram a umidade. Com isso, formam-se nuvens duas vezes mais densas do que em superfícies sem florestas. A probabilidade de chuva aumenta, e com isso 5% a mais de luz é refletida, em vez de ser absorvida. O clima local esfria – e o clima frio e úmido é ideal para as coníferas. Devido a esse efeito, os ecossistemas desempenham um papel possivelmente importante na redução das mudanças climáticas.
As precipitações regulares são fundamentais para o ecossistema da Europa Central, pois água e floresta formam um par quase inseparável. Seja riachos, lagos ou a própria floresta, todos os ecossistemas devem oferecer a seus habitantes a condição mais constante possível. Um caso típico de animal que não gosta de grandes alterações é o caramujo de água doce. Dependendo da espécie, um indivíduo mede menos de 2 milímetros e adora água fria, que não deve ultrapassar 8ºC.
O motivo de muitos desses caramujos não suportarem água mais quente está no passado da espécie: seus ancestrais se adaptaram às águas formadas pelo degelo dos glaciares, tão comuns na Europa durante a última Era do Gelo. Os mananciais limpos que nascem nas florestas oferecem tais condições. A água emerge a uma temperatura fria e constante, pois sai dos lençóis freáticos subterrâneos, nas camadas mais profundas do solo, onde fica isolada das temperaturas externas. Como atualmente não há mais geleiras na Europa, esse é o hábitat substituto ideal para os caramujos.
No entanto, ainda assim a água precisa brotar o ano todo, e é nesse ponto que a floresta entra em cena, pois o solo age como um grande reservatório para a chuva. As árvores evitam que as gotas caiam com muita força no solo; em vez disso, elas pingam suavemente dos galhos. O solo arenoso absorve toda a água, impedindo a criação de charcos. Quando a terra fica saturada e a reserva para as árvores já está cheia, a água excedente passa a escoar devagar, ao longo de anos, para as camadas mais profundas, e às vezes são necessárias décadas até que a umidade volte a brotar.
Hoje em dia já não existem mais oscilações entre períodos de seca e fortes precipitações, e restou apenas um manancial de onde a água brota, embora nem sempre se possa dizer que ela de fato “brota”. Muitas vezes parece apenas uma região pantanosa, enlameada, que se estende no solo da floresta como uma mancha escura até o riacho mais próximo. No entanto, olhando mais de perto (e para isso é necessário ficar de joelhos), é possível reconhecer filetes mínimos que caracterizam um manancial. Mas, para descobrir se a água acumulada é apenas consequência de uma chuva forte ou de fato um lençol freático, é preciso usar um termômetro. Se ela estiver abaixo de 9ºC, deve ter brotado de um manancial.
É pouco provável que alguém vá passear na floresta com um termômetro. Mas existe uma alternativa: passear quando o solo estiver congelado e quebradiço, pois as poças e a água da chuva congelam, mas os mananciais continuam vazando água. Os caramujos de água doce também gostam dessa temperatura constante e ideal o ano todo. E não é apenas o solo que torna isso possível. O teto de folhas das árvores fornece sombra e bloqueia o excesso de radiação solar. No verão, um micro-hábitat como esse poderia se aquecer rapidamente e cozinhar os caracóis.
A floresta oferece um serviço semelhante e até mais importante para os riachos. Ao contrário do manancial (de onde a água brota a uma temperatura constantemente fria), a água dos riachos sofre oscilações de temperatura. Animais como a larva de salamandra e o girino, que vivem fora do riacho, se comportam como os caracóis: precisam do oxigênio na água, por isso ela deve permanecer fria, mas não a ponto de congelar, do contrário eles morrem.
As árvores frondosas solucionam esse problema. No inverno, quando o sol quase não esquenta, os galhos sem folhas deixam passar muita radiação solar, elevando a temperatura da água. O contato da água com o mato e as pedras também impede o congelamento rápido. Por outro lado, se no fim da primavera esquentar demais, as folhas das árvores nascem e “fecham a cortina”, evitando que o sol esquente demais a água corrente. Depois disso o céu só se abre sobre o riacho no outono, quando as temperaturas voltam a cair.
Já os riachos próximos a coníferas passam por mais dificuldades. Nessas regiões o inverno é rigoroso, a água congela, às vezes por completo, e, como a água demora para aquecer na primavera, o curso de água não pode servir de hábitat para muitos organismos. No entanto, é difícil que surjam coníferas naturalmente à beira de riachos, pois os abetos não gostam de ter as raízes saturadas de água e mantêm distância desse tipo de terreno. Em geral esse conflito entre a floresta de coníferas e os habitantes dos riachos é causado por plantações.
As árvores continuam sendo importantes para os riachos mesmo após a morte. Por exemplo, se uma faia morta cai na transversal sobre o leito de um riacho, ela permanecerá ali por décadas, agindo como um pequeno dique e criando áreas de água parada em que podem viver espécies que não gostam de correntes fortes, como as larvas de salamandra. Na água fria da floresta, elas espreitam pequenos caranguejos, dos quais se alimentam. Para tal a qualidade da água precisa ser perfeita, e até isso as árvores mortas propiciam, pois nos laguinhos represados depositam-se lama e partículas em suspensão, e por causa da lentidão da correnteza as bactérias têm mais tempo para decompor substâncias tóxicas antes de serem levadas. Por isso, não precisamos nos preocupar ao ver espuma na água após uma chuva forte. O que inicialmente parece um desastre ambiental, na verdade, pode ser o resultado da ação dos ácidos húmicos, que entram em contato com o ar em pequenas quedas-d’água e formam a espuma. Esses ácidos nascem da decomposição de folhas e madeira morta e são extremamente valiosos para o ecossistema.
Nos últimos anos, a floresta tem visto uma redução no número de troncos caídos para formar esses pequenos charcos, e cada vez mais ela recebe a ajuda de um animal que estava em extinção mas voltou à ativa: o castor. Talvez as árvores não fiquem felizes com essa “proteção”, pois na verdade esse roedor que pesa até 30 quilos é o lenhador dos animais. Em uma noite, pode derrubar árvores com tronco de diâmetro entre 8 e 10 centímetros (se for mais grosso, ele necessitará de mais turnos de trabalho).
O castor precisa derrubar os troncos por causa dos galhos – ele se alimenta deles e faz estoque na toca, que no decorrer do ano pode alcançar alguns metros de largura. Também usa os galhos para esconder a entrada da toca. A fim de aumentar a proteção, o castor cava os túneis de acesso embaixo d’água; isso impede o acesso de animais de rapina. Apenas a parte habitável fica acima do nível da água, em terra firme. Tendo em vista que o espelho d’água pode subir ou descer dependendo da época do ano, muitos castores constroem diques e represam riachos, formando grandes lagoas. A água escoa lentamente da floresta, e perto da região de represamento formam-se charcos. Os amieiros e salgueiros adoram o solo úmido, mas as faias odeiam, e morrem. No entanto, mesmo as espécies de árvores que se aproveitam do aumento da umidade não duram muito tempo na área de atuação do castor, pois são uma fonte viva de alimentos do roedor.
Embora o castor prejudique a floresta a seu redor, em geral ele exerce uma influência positiva no ecossistema, pois regula o equilíbrio hídrico da região. Além disso, cria hábitats para espécies que precisam de áreas extensas de água parada.
A chuva pode criar um clima maravilhoso durante uma caminhada, mas se torna um problema se não estivermos com roupas adequadas. Mas, caso você esteja numa floresta de árvores frondosas e não queira pegar chuva, é possível se precaver e ir embora antes. Para isso, é preciso que na floresta haja pássaros que mudem o canto quando a chuva se aproxima, como é o caso dos tentilhões (ave comum na Europa, na África e na Ásia), que cantam com ritmo quando o tempo está bom. Porém, quando a chuva se aproxima, o canto se transforma em um grasnado alto e nada musical.

Peter Wohlleben, in A vida secreta das árvores: O que elas sentem e como se comunicam

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