quinta-feira, 28 de outubro de 2021

A trilha dos ninhos de aranha | 2

No quarto da irmã, se olhar daquele jeito, sempre parece haver neblina; uma tira vertical cheia de coisas com a ofuscação da sombra em volta, e tudo parece mudar de tamanho conforme o olho se aproxima ou se afasta da fresta. É como olhar através de uma meia de mulher, e também o cheiro é o mesmo: o cheiro da sua irmã, que começa para lá da porta de madeira e que talvez emane daquelas roupas amarrotadas e daquela cama só ajeitada — uma esticada nos lençóis, sem sequer arejá-los.
A irmã de Pin sempre foi desleixada com os afazeres da casa, desde menina: Pin chorava bastante no colo dela, quando criança, com a cabeça cheia de crostas, e então ela o deixava na mureta do lavadouro e ia pular com os moleques nos retângulos traçados com giz pelas calçadas. De vez em quando voltava o navio do pai deles, e dele Pin só lembra os braços, grandes, nus, que o erguiam no ar, fortes braços marcados por veias escuras. Mas desde que a mãe deles morreu, suas vindas foram se tornando cada vez mais raras, até que ninguém mais o viu; dizia-se que ele tinha outra família numa cidade além do mar.
Agora, para morar, mais que um quarto Pin tem um quartinho de despejo, uma casinha de cachorro do outro lado de uma divisória de madeira, com uma janela que mais parece uma fenda, de tão estreita e alta que é, e profunda na inclinação do muro da velha casa. Do outro lado há o quarto da sua irmã, filtrado pela fresta da divisória, fresta de deixar os olhos vesgos de tanto girá-los para olhar tudo em volta. A explicação de todas as coisas do mundo está lá, atrás daquela divisória. Pin passou horas e horas ali, desde menino, e ali deixou seus olhos afiados feito pontas de alfinete; tudo o que acontece lá dentro ele sabe, embora a explicação ainda lhe escape e Pin acaba se enrolando toda noite na sua caminha, abraçando seu próprio peito. Então as sombras do quartinho de despejo se transformam em sonhos estranhos, de corpos se perseguindo, se batendo e se abraçando nus, até alguma coisa grande e quente e desconhecida chegar, e dominá-lo, a ele, Pin, e acariciá-lo e retê-lo no próprio calor, e isso é a explicação de tudo, um chamado longínquo de felicidade esquecida.
Agora o alemão anda pelo quarto de camiseta, com os braços rosados e gorduchos feito coxas, e de vez em quando fica em foco na fresta; a certa altura também dá para ver os joelhos da irmã rodando no ar e se metendo debaixo dos lençóis. Pin agora tem de se contorcer para saber onde vai ser deixado o cinturão com a pistola; está lá pendurado no espaldar de uma cadeira como uma fruta estranha e Pin gostaria de ter um braço tão fino quanto seu olhar para fazê-lo passar pela fresta, apanhar a arma e puxá-la para si. Agora o alemão está nu, de camiseta, e ri: sempre ri quando está nu, porque no fundo sua alma é pudica, de moça. Pula na cama e apaga a luz; Pin sabe que vai passar um pouco de tempo assim na escuridão e em silêncio, antes que a cama comece a gemer.
A hora é esta: Pin deveria entrar no quarto, descalço e de quatro e puxar o cinturão da cadeira sem fazer barulho: tudo isso não para fazer uma brincadeira e depois rir e zombar, mas para alguma coisa séria e misteriosa, dita pelos homens da taberna, com um reflexo opaco no branco dos olhos. No entanto, Pin gostaria de ser sempre amigo dos adultos, e que os adultos sempre brincassem com ele e o fizessem sentir íntimo. Pin adora os adultos, adora provocá-los, os adultos fortes e tolos, dos quais conhece todos os segredos, também adora o alemão, e agora este será um fato irreparável; talvez não poderá mais brincar com o alemão, depois disso; e também com os companheiros da taberna vai ser diferente, vai haver alguma coisa que o ligará a eles, da qual não se poderá rir e sobre a qual não se poderão dizer coisas obscenas, e eles olharão para ele sempre com aquela linha reta entre as sobrancelhas e lhe pedirão, em voz baixa, coisas cada vez mais estranhas. Pin gostaria de se deitar na sua caminha e ficar de olhos abertos e fantasiar, enquanto do outro lado o alemão bufa, e a irmã faz uns barulhos como se sentisse cócegas debaixo das axilas; fantasiar bandos de garotos que o aceitam como líder, porque ele sabe tantas coisas mais que eles, e todos juntos se revoltarem contra os adultos e bater neles e fazer coisas maravilhosas, coisas pelas quais até os adultos ficassem obrigados a admirá-lo e a querê-lo como líder, e ao mesmo tempo a gostar dele e a acariciar sua cabeça. Mas, não, ele tem de se mexer sozinho na noite, através do ódio dos adultos, e roubar a pistola do alemão, coisa que os outros garotos que brincam com pistolas de lata e espadas de madeira não fazem. Sabe-se lá o que diriam se amanhã Pin fosse ter com eles, e revelando-a aos poucos lhes mostrasse uma pistola de verdade, brilhante e ameaçadora e que parece estar a ponto de disparar sozinha. Talvez eles tivessem medo e Pin também talvez tivesse medo de segurá-la escondida debaixo da jaqueta: a ele bastaria uma daquelas pistolas para crianças, que disparam um raio de relâmpagos vermelhos, e com ela assustar tanto os adultos a ponto de fazê-los cair desmaiados e pedir-lhe piedade.
Mas que nada, Pin está de quatro na soleira do quarto, descalço, com a cabeça já para lá da cortina naquele cheiro de macho e fêmea que logo dá no nariz. Vê as sombras dos móveis no quarto, a cama, a cadeira, o bidê alongado sobre seu tripé. Pronto: da cama agora começa a se ouvir aquele diálogo de gemidos, agora se pode avançar de gatinhas tomando cuidado para não fazer barulho. Mas talvez Pin ficasse contente se o chão rangesse, o alemão de repente ouvisse e acendesse a luz, e ele fosse obrigado a fugir descalço com sua irmã correndo atrás dele e gritando: Porco! E que a vizinhança toda ouvisse e se falasse disso na taberna também, e ele pudesse contar a história para o Motorista e para o Francês, com tantos detalhes a ponto de acreditarem em sua boa-fé e assim levá-los a dizer: “Chega. Não deu certo. Não se fala mais nisso”.
O chão de fato range, mas muitas coisas rangem naquele momento e o alemão não ouve: Pin já chegou a tocar o cinturão, e o cinturão é uma coisa concreta ao tato, não mágica, e desliza pelo espaldar da cadeira de modo espantosamente fácil, sem nem sequer bater no chão. Agora “a coisa” aconteceu: o medo fingido de antes se torna medo de verdade. É preciso enrolar depressa o cinturão ao redor do coldre, e esconder tudo debaixo do pulôver sem meter os pés pelas mãos: depois voltar, de quatro, sobre os próprios passos, devagarinho, sem nunca tirar a língua de entre os dentes: talvez, se tirasse a língua de entre os dentes, alguma coisa espantosa acontecesse.
Uma vez fora, não há que pensar em voltar para sua caminha, esconder a pistola debaixo do colchão como as maçãs roubadas na feira. Daqui a pouco o alemão vai se levantar e vai procurar a pistola, e vai deixar tudo de pernas para o ar.
Pin sai para o beco: não é que a pistola esteja pegando fogo em suas mãos; assim escondida na sua roupa é um objeto como outro qualquer, e dá até para esquecer que o temos; aliás, não é boa essa indiferença e ao lembrar disso Pin gostaria de sentir um arrepio. Uma pistola de verdade. Pin tenta se empolgar com esse pensamento. Alguém que tem uma pistola de verdade pode tudo, é como um homem adulto. Pode fazer tudo o que quiser com as mulheres e com os homens, ameaçando matá-los.
Pin agora vai empunhar a pistola e vai andar o tempo todo com ela apontada: ninguém poderá tirá-la dele e todos terão medo. No entanto, está com ela ainda enroscada no novelo do cinturão, debaixo do pulôver, e não se resolve a tocá-la, quase esperando que quando for procurá-la ela não esteja mais lá, que tenha sumido no calor do seu corpo.
O lugar para olhar a pistola é um vão de escada bem escondido onde a gente se mete para brincar de esconde-esconde, alcançado pelo reflexo da luz de um lampião zarolho. Pin desenrola o cinturão, abre o coldre e, com um gesto parecido com o de puxar um gato pelo pescoço, puxa a pistola: é realmente grande e ameaçadora, se Pin tivesse coragem de brincar com ela, fingiria que é um canhão. Mas Pin a manuseia como se fosse uma bomba; a trava de segurança, onde estará a trava de segurança?
No fim decide empunhá-la, mas cuida de não colocar os dedos debaixo do gatilho, segurando bem firme a coronha; ainda assim é possível empunhar direito e apontá-la para o que quisermos. Pin antes aponta para o tubo da goteira, à queima-roupa na chapa, depois para um dedo, um dedo seu, e faz cara feroz puxando a cabeça para trás e dizendo entre os dentes: “A bolsa ou a vida”, depois acha um sapato velho e aponta para o sapato velho, para o calcanhar, depois dentro, depois passa a boca da arma sobre as costuras da gáspea. É uma coisa muito divertida: um sapato, um objeto tão conhecido, especialmente para ele, aprendiz de sapateiro, e uma pistola, um objeto tão misterioso, quase irreal; fazendo um objeto encontrar o outro, podemos fazer coisas que nunca imaginamos, podemos fazê-los representar histórias maravilhosas.
Mas a certa altura Pin não resiste mais à tentação e aponta a pistola para a própria testa: é uma coisa de dar tonturas. Para a frente, até tocar a pele e sentir o frio do metal. Até poderia passar o dedo pelo gatilho, agora: não, melhor apertar a boca do cano contra a face até machucar o osso, e sentir o aro de metal vazio por dentro, de onde nascem os disparos. Afastando a arma da testa, de chofre, talvez o repuxo de ar faça explodir um tiro: não, não explode. Agora se pode colocar o cano na boca e sentir o sabor debaixo da língua. Depois, o mais amedrontador de tudo, levá-lo aos olhos e olhar para dentro, no cano escuro que parece fundo como um poço. Certa vez Pin viu um garoto que tinha atirado no próprio olho com uma espingarda de caça, quando estava sendo levado para o hospital: tinha um enorme coágulo de sangue que lhe cobria metade do rosto, e a outra metade estava toda cheia de pontinhos pretos da pólvora.
Agora Pin brincou com a pistola de verdade, brincou o bastante: pode dá-la para aqueles homens que a haviam pedido, não vê a hora de entregá-la. Quando não a tiver mais será como se não a tivesse roubado e de nada vai adiantar o alemão ficar enfurecido com ele, Pin poderá zombar dele de novo.
O primeiro impulso seria entrar correndo na taberna, anunciando aos homens: “Estou com ela bem firme aqui!”, em meio ao entusiasmo de todos, que exclamam: “Não pode ser!”. Depois lhe parece que seria mais engraçado perguntar a eles: “Adivinham o que eu trouxe?”, e irritá-los um pouco antes de contar. Mas, claro, eles pensarão na pistola na hora, dá na mesma então entrar logo no assunto, e começar contando para eles a história de dez modos diferentes, dando a entender que não deu certo, e quando eles não estiverem agüentando mais e não estiverem entendendo mais nada, deixar a pistola em cima da mesa e dizer: “Olhem só o que eu achei no meu bolso”, para ver com que cara eles ficam.
Pin entra na taberna na ponta dos pés, calado; os homens ainda estão confabulando em volta de uma mesa, com os cotovelos que parecem ter criado raízes ali. Só aquele homem desconhecido não está mais lá, e sua cadeira está vazia. Pin está atrás deles e eles não perceberam: espera que de repente o vejam e tenham um sobressalto, soltando para cima dele uma saraivada de olhares interrogativos. Mas ninguém se vira.
Pin mexe numa cadeira. O Girafa vira o pescoço, dá uma espiada nele; depois torna a falar, em voz baixa.
Tudo bem aí? — diz Pin.
Dão uma olhada nele.
Cara feia — diz o Girafa, amigável.
Ninguém diz mais nada.
Então — diz Pin.
Então — diz Gian, o Motorista —, o que conta de novo?
Pin está meio derrubado.
Bem — diz o Francês —, está desanimado? Cante uma para nós, Pin.
Pois é”, pensa Pin, “eles também estão se fazendo de idiotas, mas não estão agüentando de curiosidade.”
Vamos lá — diz. Mas não começa: está com a garganta grudada, seca, como quando temos medo de chorar.
Vamos lá — repete. — Qual eu canto?
Qual? — diz Miscèl.
E o Girafa:
Que tédio esta noite, gostaria de já estar dormindo.
Pin não aguenta mais a brincadeira.
E aquele homem? — pergunta.
Quem?
Aquele homem sentado ali, antes?
Ah — dizem os outros, e balançam a cabeça. Depois recomeçam a confabular entre si.
Eu — diz o Francês aos outros — com esses sujeitos do comitê não me comprometeria muito. Não estou a fim de entrar bem pela bela cara deles.
Bem — diz Gian, o Motorista. — Nós fizemos o quê? Dissemos: vamos ver. Para começar é bom ter uma ligação com eles sem nos comprometermos, e ganhar tempo. E depois com os alemães eu tenho uma conta para acertar desde que estávamos juntos no front, e se tiver de lutar, luto com prazer.
Bem — diz Miscèl. — Olha que com os alemães não se brinca e nunca se sabe como vai acabar. O comitê quer que sejamos do gap; muito bem, nós faremos um gap por nossa conta.
Para começar — diz o Girafa —, mostramos que estamos do lado deles, e nos armamos. Uma vez armados…
Pin está armado: sente a pistola debaixo da jaqueta e coloca a mão em cima, como se quisessem tirá-la dele.
Vocês têm armas? — pergunta.
Não pense nisso — diz o Girafa. — Trate de pensar é naquela pistola do alemão, como combinamos.
Pin ouve atentamente; agora dirá: adivinhem, dirá.
Trate de não perdê-la de vista, se ficar ao seu alcance…
Não está sendo como Pin queria, por que estão ligando tão pouco para ele, agora? Gostaria de ainda não ter pegado a pistola, gostaria de voltar até o alemão e colocá-la de volta em seu lugar.
Por uma pistola — diz Miscèl —, não vale a pena arriscar. Depois, é um modelo antiquado: pesado, trava.
Enquanto isso — diz o Girafa —, precisamos mostrar ao comitê que estamos fazendo alguma coisa, isso é importante. — E continuam confabulando em voz baixa.
Pin não escuta mais nada: agora tem certeza de que não dará a pistola para eles; está com os olhos marejados de lágrimas e uma raiva lhe aperta as gengivas. Os adultos são uma raça ambígua e traidora, não têm aquela seriedade terrível nas brincadeiras, própria dos garotos, e, no entanto, também têm lá suas brincadeiras, cada vez mais sérias, uma brincadeira dentro da outra, e nunca se consegue entender qual é a verdadeira. Antes parecia que estavam brincando com o homem desconhecido contra o alemão, agora sozinhos contra o homem desconhecido, nunca dá para confiar no que dizem.
Bem, cante alguma coisa para nós, Pin — dizem agora, como se nada tivesse acontecido, como se não tivesse havido um pacto muito sério entre ele e os outros, um pacto consagrado por uma palavra misteriosa: gap.
Vamos lá — diz Pin, com os lábios tremendo, pálido. Sabe que não pode cantar. Gostaria de chorar, mas explode num grito em i que estoura os tímpanos e acaba numa enxurrada de impropérios. — Bastardos, filhos daquela cadela sarnenta da sua mãe, vaca suja imunda puta!
Os outros ficam olhando o que deu nele, mas Pin já fugiu da taberna.
Lá fora, o primeiro impulso seria procurar aquele homem, o que chamam de “comitê”, e lhe dar a pistola: agora é a única pessoa por quem Pin sente respeito, embora antes, tão calado e sério, lhe inspirasse desconfiança. Mas agora é o único que poderia compreendê-lo, admirá-lo por seu gesto, e talvez o levasse consigo para fazer a guerra contra os alemães, só eles dois, armados de pistola, a postos nas esquinas das ruas. Mas sabe-se lá onde estará Comitê agora, não dá para perguntar por aí, ninguém o tinha visto antes.
A pistola fica com Pin e Pin não vai entregá-la a ninguém e não dirá a ninguém que a tem. Só dará a entender que tem uma força terrível e todos lhe obedecerão. Quem tem uma pistola de verdade deveria fazer umas brincadeiras maravilhosas, brincadeiras que nenhum garoto nunca fez, mas Pin é um garoto que não sabe brincar, que não sabe participar das brincadeiras, nem dos adultos, nem dos garotos. E além disso Pin agora irá para longe de todos e vai brincar sozinho com sua pistola, fará brincadeiras que ninguém mais conhece e ninguém mais poderá saber.
É tarde da noite: Pin foi deixando o aglomerado das velhas casas, pelos caminhos que passam por entre as hortas e os barrancos atulhados de lixo. Na escuridão os alambrados que cercam as sementeiras lançam uma rede de sombras sobre a terra cinza-lunar; as galinhas agora dormem empoleiradas nos galinheiros e os sapos estão todos fora da água e fazem coro ao longo de toda a torrente, da nascente à foz. Vai saber o que aconteceria se atirasse num sapo: talvez só restasse uma baba verde esguichada em algumas pedras.
Pin anda pelas trilhas que contornam a torrente, lugares íngremes, onde ninguém planta nada. Há caminhos que só ele conhece e que os outros garotos dariam tudo para conhecer: há um lugar onde as aranhas fazem ninho, e só Pin sabe, e é o único de todo o vale, talvez da região toda, a saber: nunca nenhum garoto soube de aranhas que fazem ninho, a não ser Pin.
Talvez um dia Pin encontre um amigo, um verdadeiro amigo, que o compreenda e que ele possa compreender, e então para ele, só para ele, Pin mostrará o lugar das tocas das aranhas. É um atalho pedregoso que desce para a torrente entre duas paredes de terra e grama. Ali, em meio à grama, as aranhas fazem suas tocas, uns túneis forrados de cimento de grama seca; mas o mais maravilhoso é que as tocas têm uma portinha, também feita daquela massa seca de grama, uma portinha redonda que pode ser aberta e fechada.
Quando aprontou alguma feia e de tanto rir seu peito se encheu de uma tristeza opaca, Pin vagueia sozinho pelas trilhas do fosso e procura o lugar onde as aranhas fazem sua toca. Com um graveto comprido pode-se alcançar o fundo de uma toca, e espetar a aranha, uma pequena aranha preta, com uns desenhinhos cinzentos como nos vestidos de verão das velhas carolas.
Pin diverte-se em desmanchar as portas das tocas e espetar as aranhas nos gravetos, e também em apanhar grilos e olhar de perto para aquelas caras absurdas de cavalos verdes, e depois em cortá-los em pedaços e fazer estranhos mosaicos com suas patas em cima de uma pedra lisa.
Pin é maldoso com os bichos: são seres monstruosos e incompreensíveis como os homens; deve ser um horror ser um bichinho, ou seja, ser verde e cagar em gotas, e ter sempre medo de que chegue um ser humano como ele, com uma cara enorme cheia de sardas vermelhas e pretas e com dedos capazes de fazer os grilos em pedacinhos.
Agora Pin está só entre as tocas das aranhas e a noite a seu redor é infinita, como o coro dos sapos. Está só, mas tem a pistola consigo, e agora coloca o cinturão com o coldre sobre a bunda, como o alemão; só que o alemão é gordo e para Pin o cinturão pode ficar a tiracolo, como as bandoleiras daqueles guerreiros que se vêem no cinema. Agora dá para sacar a pistola com um grande gesto, como se desembainhasse uma espada, e também para dizer: “Atacar, meus bravos!”, como fazem os garotos quando brincam de pirata. Mas sabe-se lá que prazer sentem aqueles fedelhos ao dizer e fazer aquelas coisas: Pin, depois de ter dado uns saltos pelo prado, com a pistola apontada para as sombras das toras de oliveira, já está cheio e não sabe mais o que fazer com a arma.
As aranhas subterrâneas naquele momento roem vermes ou se acasalam, os machos com as fêmeas soltando fios de baba: são seres nojentos como os homens, e Pin enfia o cano da pistola na entrada da toca com vontade de matá-las. Sabe-se lá o que aconteceria se desse um tiro, as casas estão distantes e ninguém entenderia de onde veio. Depois, os alemães e os da milícia não raro atiram à noite em quem anda por aí durante o toque de recolher.
Pin está com o dedo no gatilho, com a pistola apontada para a toca de uma aranha: resistir à vontade de apertar o gatilho é difícil, mas decerto a pistola está com a trava de segurança e Pin não sabe como se tira.
De repente o tiro sai assim tão de chofre que Pin nem sequer se deu conta de que apertou o gatilho: a pistola dá um salto para trás em sua mão, fumegante e toda suja de terra. O túnel da toca desabou, sobre ele há um pequeno desmoronamento de terra e a grama em volta está requeimada.
Pin é tomado antes de susto, e depois de alegria: tudo foi tão bonito e o cheiro da pólvora é tão bom. Mas o que o assusta de verdade é que os sapos se calam de repente, e não se ouve mais nada, como se aquele disparo tivesse matado a Terra toda. Depois um sapo, muito longe, recomeça a cantar, e depois outro mais próximo, e outros mais próximos ainda, até que o coro recomeça e Pin tem a impressão de que eles estão gritando alto, muito mais alto do que antes. E nas casas um cão late e uma mulher começa a chamar pela janela. Pin não vai atirar mais porque aqueles silêncios e aqueles ruídos lhe metem medo. Mas numa outra noite vai voltar e não haverá nada capaz de assustá-lo e então vai disparar todas as balas da pistola até contra os morcegos e os gatos que rondam os galinheiros àquela hora.
Agora é preciso encontrar um lugar onde esconder a pistola: a cavidade de uma oliveira; ou melhor: enterrá-la, ou, melhor ainda, cavar um nicho na parede de grama onde ficam os ninhos das aranhas e cobrir tudo com húmus e grama. Pin cava com as unhas num ponto onde o húmus já está todo desgastado pelos tantos túneis das aranhas, coloca ali dentro a pistola no coldre, que tirou do cinturão, e recobre tudo com húmus e grama, e pedaços de paredes de tocas, mastigados pelas bocas das aranhas. Depois coloca umas pedras de modo que só ele possa reconhecer o lugar, e vai embora chicoteando as moitas com a tira do cinturão. O caminho de volta é pelos beudi, os pequenos canais acima do fosso, com uma fileira estreita de pedras para se andar.
Ao caminhar Pin arrasta a ponta do cinturão na água da valeta e assobia para não ouvir o coaxar dos sapos, que parece se amplificar cada vez mais.
Depois lá estão as hortas e o lixo e as casas: e chegando ali Pin ouve vozes não italianas falando. Há o toque de recolher, mas mesmo assim ele anda bastante por aí à noite, porque é uma criança e as patrulhas não falam nada. Mas desta vez Pin tem medo, porque talvez aqueles alemães estejam ali procurando quem atirou. Estão vindo em sua direção e Pin gostaria de fugir, mas eles já estão gritando alguma coisa e o alcançam. Pin encolheu-se num gesto de defesa, com a tira do cinturão feito um chicote. Mas eis que os alemães olham justamente para a tira do cinturão, é o que eles querem; e de repente o pegam pela nuca e o levam embora. Pin diz uma porção de coisas: orações, lamentos, insultos, mas os alemães não entendem nada; são piores, muito piores que os guardas municipais.
No beco há até umas patrulhas alemãs e fascistas armadas, e pessoas detidas, Miscèl, o Francês, também. Fazem Pin passar no meio deles, ao subir pelo beco. Está escuro: somente no alto dos degraus tem um ponto iluminado por um lampião zarolho por causa do obscurecimento bélico.
À luz do lampião zarolho, no alto do beco, Pin vê o marinheiro com a cara gorda, enfurecida, apontando um dedo para ele.

Italo Calvino, in A trilha dos ninhos de aranha

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