Donana temeu muitas vezes que adentrassem
sua porta para dizer que haviam encontrado o filho morto. Meu pai
sumiu sem deixar rastros e já tinham se passado muitos dias desde
que minha avó havia chegado à casa e encontrado a porta
arrebentada.
Foi difícil continuar a roçar naqueles
dias. Minha avó encerrava o trabalho e espalhava os outros filhos
pelas veredas na estrada, para procurarem pelo irmão. Ela própria
avançava na mata com o facão, abrindo picadas, chamando por Zeca –
José Alcino, quando queria repetir seu nome todo – ou prendendo a
respiração, para que do seu silêncio viesse uma mensagem de onde
se encontrava. Voltavam a se encontrar à noite, em casa, à luz de
vela e lampião, para dizer que viram pegadas próximo à margem do
rio, ou que uma mulher na lonjura das cercas da fazenda havia dito
que viu Zeca, que não tinha certeza porque já não enxergava muito
bem, mas, se não estava enganada, era ele andando feito doido. Ou
que alguns haviam dito que tinha onça agitada na mata, por onde
poderia estar escondido. Ou que tinham roubado ovos e frutas nos seus
quintais ou tinha sumido roupa no varal.
O tempo parecia não se movimentar
naqueles dias, as notícias chegavam de forma lenta. O sol não fazia
o caminho nos mesmos passos no céu e a noite parecia longa. Foi
quando um dos meninos de Donana chegou correndo em casa dizendo que
um vaqueiro da Fazenda Piedade, a muitas léguas de distância,
avistou um homem jovem, preto, sem roupas que lhe tapassem a
vergonha, vivendo num pé de jatobá no meio da mata, nos limites com
outra fazenda que não sabia o nome. Minha avó deixou Carmelita com
as crianças menores, avisou ao capataz que precisava saber se era o
filho e rumou com os maiores para o tal lugar. Levou farinha,
rapadura e beiju para matar a fome das crianças. Não sabia por
quanto tempo caminharia.
Seguiram pela estrada até chegar à
Piedade. O vaqueiro disse que já tinha alguns dias que não via o
homem, mas “aquilo não era coisa certa não, dona, ele dorme no pé
de jatobá e junto de uma onça mansa, que não faz mal a ele”. A
onça, disse, parecia estar enfeitiçada porque o rondava e protegia
como se cria fosse. O homem não falava, ficava em silêncio,
encolhido naquele canto. A mesma onça que Donana mais tarde viu nos
olhos de Fusco.
Minha avó pedia também um pouco de
farinha para alimentar as crianças quando nas suas andanças
encontrava alguém usando uma casa de preparo. Acampou com os meninos
perto do pé de jatobá. Colheu frutos caídos. Colheu a semente de
jatobá para fazer beiju. O beiju que matou a fome de seus ancestrais
e mataria a fome de sua descendência. Mal dormia sob a palhoça que
ergueu para abrigar os filhos do sereno, temerosa das histórias
sobre a onça.
Numa das madrugadas de vigília, ouviu um
sacudir de folhas não muito distante, indicando que o filho poderia
estar à espreita. Donana se ergueu da esteira, chamou o maior dos
meninos, todos dormiam, e deixou que o som a guiasse pelas trilhas da
mata. Avistou barreiro e vagalumes em grande quantidade se
movimentando em alvoroço próximo a um espelho d’água. Um animal
apoiado nas quatro patas bebia água afundando a cabeça na lama.
Mas, à medida que a noite se dissipava, minha avó percebeu que
aquele animal selvagem apoiado nos quatro membros era o filho
desaparecido há meses. Chamou por “José Alcino”, “Zeca”,
mas ele desapareceu se embrenhando pela parte mais fechada da
caatinga, se arrastando entre espinhos e galhos secos. Donana, que
aprendeu a andar devagarinho, sem assustar capataz e vizinho, que
roçava com a força que muitos homens não teriam para roçar, se
embrenhou na mata e encontrou Zeca de olhos arregalados, mostrando os
dentes, acuado. Donana fez reza, pediu licença aos encantados da
mata e laçou o filho, como se laçasse um bezerro para derrubá-lo.
Seu corpo nu e sujo estava coberto de grandes feridas. Seu cheiro era
mais forte que o cheiro de um caititu. Cobriu sua nudez com uma
manta, amarrou suas mãos com força enquanto ele gritava e chamou os
meninos para rumarem juntos para Caxangá. Deixou palhoça sem
derrubar e sobras de beiju de jatobá.
No meio do caminho estava a casa do
compadre João do Lajedo. “Ele que carrega o meu fardo”, disse
quando o velho abriu a porta, “ele leva por mim porque fui
desobediente, não me dobrei. Resisti. Os santos me castigaram”. Os
vizinhos do velho João do Lajedo se aproximaram porque Zeca gritava
acuado, ganindo como um cão querendo fugir. “Cura meu filho,
compadre. Cura meu filho. E se tiver de ser ele o curador que levará
meu carrego, então que seja”, disse, dando as costas e seguindo
com as crianças para casa.
Itamar Vieira Junior, in Torto Arado
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