Sempre me perguntei o que se passava na
cabeça daquelas pessoas que perseguem celebridades. Aquelas que, num
dado momento, recebem intimações dizendo que precisam manter uma
distância mínima de 500m do famoso e também da casa dele.
Imaginava pessoas solitárias, vivendo em uma casa cheia de fotos do
indivíduo-alvo nas paredes, para as quais olhavam com olhos
perturbados.
Mudando de assunto, passo a narrar minha
paixão pela obra de García Márquez. Tinha 16 anos quando minha tia
me emprestou seu exemplar de Do amor e outros demônios. Pouco
tempo depois migrei para O amor nos tempos do cólera. Aos 19,
presenteei um namorado com Crônica de uma morte anunciada, que
roubei na sequência para ler. Devorei Doze contos peregrinos
em um verão em Caxambu e A incrível e triste história de
Cândida Erêndira e sua avó desalmada num fim de semana em
Campinas, sequestrado da biblioteca do meu irmão. Relato de um
náufrago veio depois. Parei em Memória de minhas putas
tristes. Decidi que precisava distribuir seus livros com mais
calma pelos anos que espero que a vida me conceda. Guardo Cem anos
de solidão para algum período especialmente calmo que não sei
se terei. Mas guardo mesmo assim.
Quando tinha 23 anos decidi gastar as
férias e o pouco dinheiro que tinha guardado em uma viagem pela
Colômbia, por razões óbvias. Fiz um roteiro especialmente
cuidadoso. Precisava passar por Barranquilla para visitar o Museu do
Caribe, onde havia uma sala dedicada unicamente a García Márquez,
que viveu boa parte de sua vida na cidade. Precisava, obviamente, de
dias em Cartagena com muita calma. Até tentei colocar Aracataca no
roteiro, mas não dava tempo.
Muito bem. Ao pesquisar hotéis em
Cartagena, deparei com um especialmente maravilhoso, para o qual só
sorri e nem olhei os preços. Era óbvio que não cabia no meu
orçamento. Olhei outros. Mas algo me arrastava de novo para aquela
maravilha inacessível. Voltei para ele. E fui embora. E voltei de
novo. Até que descobri que aquele era o antigo convento de Santa
Clara, no qual García Márquez baseou imensa parte de Do amor e
outros demônios.
Nem quis saber o preço, nem como iria
pagar. Era lá que eu ia ficar. Não havia a menor possibilidade de
eu abrir mão daquilo. Isso porque eu ainda nem sabia que a casa ao
lado do hotel era dele. Quando soube, meu coração disparou, meu
olho encheu de lágrimas e eu já comecei a sentir algumas
semelhanças – ainda que remotas – com os malucos que perseguem
celebridades, mesmo que soubesse que ele provavelmente não estaria
ali. Sabia que, àquela altura, ele já não morava mais na Colômbia.
Quando cheguei ao hotel, pisquei minhas
melhores pestanas para o moço que carregava as malas e usei o melhor
do meu enferrujado espanhol para perguntar se ele sabia qual era a
casa do García Márquez. Ele me mostrou na hora. E eu subitamente
virei a doida do hotel.
Na piscina, pegava a cadeira com a melhor
vista para a casa, logo cedo. Ao entardecer ficava esperando para ver
se luzes se acendiam lá dentro. Andava pelas alas do hotel tentando
situar os trechos do livro. Tocava as paredes, cheirava a madeira,
observava as aves com uma calma inédita. Imaginava-me na rua,
encontrando o autor. O que eu diria, se poderia abraçá-lo, que
cheiro ele teria e como explicaria o fato de estar rondando sua casa
havia três dias. Tudo bem que ele deveria estar no México, mas
sempre haveria uma possibilidade de estar na casa de Cartagena a
passeio. Vai saber.
No último dia, antes de dormir, resolvi
fazer minha última vigília. Fui até a parte do hotel que mais se
aproximava da casa do escritor e fiquei ali, suspirando, com a cabeça
apoiada no queixo. Imaginava o que ele faria em casa. Se estaria de
pantufas, se comeria banana frita ou pandebonos, se leria numa
poltrona à meia-luz ou se assistiria a algo bem inusitado na
televisão. Até que tive a impressão de ver uma luz piscar.
Fiquei maluca. Precisava estar num lugar
mais alto para enxergar. Olhei para trás. Havia uma escada da
manutenção. Letras vermelhas diziam que o acesso era restrito. Não
titubeei e subi, indo parar em cima de um equipamento qualquer no
qual deveria haver risco acentuado de eletrocussão. Vi que havia, de
fato, uma luz acesa em um cômodo nos fundos. Obviamente não era
ele. Mas... E se fosse?
Como o fato de estar em um lugar
proibido, em cima de um provável gerador, ainda não era loucura
suficiente, comecei a pensar que, se eu tomasse impulso, conseguiria
pular para dentro da casa dele. Sim, a distância permitia. Eu
conseguiria chegar lá para conferir quem estava na casa. Mas eu
poderia quebrar os joelhos. E poderia haver um cachorro imenso. Ou os
irmãos Vicario à minha espera. Pensei melhor e achei que talvez não
fosse uma boa ideia.
Fechei os olhos, recobrei alguma sanidade
e decidi simplesmente agradecer. Agradeci mentalmente. Por tantas
palavras, tantas histórias, tantas páginas. Agradeci por ele ter
vivido e escrito cada linha. Chorei como choraria o melhor
perseguidor de famosos. Desci as escadas, voltei para o quarto e
sonhei com Florentino Ariza me esperando em um barco de madeira,
segurando os remos.
García Márquez morreu pouco mais de um
ano depois. Um ex-namorado até me ligou para saber se eu estava bem.
Decidi que no dia em que eu voltar a Cartagena, farei tudo de novo.
Mas, dessa vez, à espera de um encontro ainda mais especial. Nessa
ocasião procurarei sua alma vagando na madrugada pelo antigo
convento a esperar um encontro com a menina dos cabelos vermelhos de
22m de comprimento, mas talvez aceitando passar alguns minutos na
companhia desta menina dos cabelos loiros de 22cm que segue esperando
ansiosamente por conhecê-lo.
Ruth Manus, in Um dia ainda vamos rir de tudo isso
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