O leitor brasileiro que porventura entrar
em contato com a arte de Guimarães Rosa através de Primeiras
estórias inevitavelmente haverá de experimentar um choque,
devido à agressiva novidade do estilo, à qual os leitores antigos
do autor se vêm habituando progressivamente. (Falamos no leitor
brasileiro, porque o estrangeiro, que a conhecer através de
tradução, terá forçosamente sob os olhos um texto atenuado e
filtrado, adaptado pelo tradutor aos padrões existentes da língua
acolhedora.)
Lembre-se que o autor fez sua aparição
na literatura como escritor regionalista. Não adotara, porém,
nenhuma das três técnicas à disposição do regionalismo:
servir-se da linguagem regional indistintamente em todo o livro,
restringi-la à fala das personagens, ou substituí-la integralmente
por uma linguagem literária, convencional. A quarta solução,
adotada por ele, consistia em deixar as formas, rodeios e processos
da língua popular infiltrarem o estilo expositivo e as da língua
elaborada embeberem a linguagem dos figurantes. Disse língua
elaborada e não culta: Guimarães Rosa, conhecedor dos
mais profundos do idioma, não se satisfaz em explorar-lhe todo o
tesouro registrado e codificado, mas submete-o a uma experimentação
incessante, para testar-lhe a flexibilidade e a expressividade. Daí
um estilo personalíssimo, que das obras de caráter regionalístico
se alastrou por toda a obra de ficção do nosso autor, e até por
suas raras produções ensaísticas.
Fez, em suma, Guimarães Rosa, em relação
à linguagem, o que todos os ficcionistas fazem da realidade, sua
matéria-prima: desagregam-na e reconstituem-na a seu bel-prazer,
tratando as suas parcelas como elementos de mosaico; com pedaços e
traços de pessoas vivas constroem as suas personagens; fundindo
cenas e acontecimentos registrados pela própria memória, deles
tiram episódios e enredos. Com clarividência notável, Antonio
Candido define o mundo de Guimarães Rosa como um universo autônomo
“composto de realidades expressionais e humanas que se articulam
com harmonia, superando por milagre o poderoso lastro de realidade
tenazmente observada, que é a sua plataforma”.
Entre os motivos dessa experimentação,
do contínuo alargar do registro da língua, figura, sem dúvida, o
propósito de amoldá-la para exprimir matizes e modalidades até
então não observados da realidade que aguardam denominação para
penetrarem na consciência comum. “O poeta se distingue como um
aparelho altamente discriminante da infinita multiplicidade de
aspectos do ser” (Oswaldino Marques). Mas o motivo principal, mais
de uma vez declarado pelo próprio ficcionista, consiste em dar
“toque e timbre novos às expressões amortecidas”. Como
pertinentemente observa Cavalcanti Proença, o nosso escritor outra
coisa não faz “senão apelar para a consciência etimológica do
leitor, neologizando vocábulos, reavivando-lhes o significado
(obliterado ou por demais esquecido pelo uso corrente), dando-lhes
uma precisão que esse mesmo uso acabou por destruir. Uma espécie
daquele silêncio que desperta os moleiros quando cessa o rolar do
moinho.”
Nas considerações seguintes, tenta-se
não a catalogação dos recursos estilísticos manejados no presente
volume (e que daria outro volume), e sim, apenas, a indicação
exemplificada das tendências a que correspondem. Não se ignora o
risco deste trabalho: os espécimes montados em alfinete com fins de
coleção, rígidos e murchos, podem parecer meras esquisitices e até
monstruosidades, por mais que vicejem e resplandeçam no contexto do
seu ambiente natural, vitalizando-o e animando-o.
Paulo Rónai, in Os vastos campos (Introdução a Primeiras estórias)
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