Vivia num país, não me recordo se
próximo ou distante, um homem que todos conheciam pelo apelido
Barbazul. Era um homem de rara beleza. Do seu rosto, o que mais
impressionava eram os olhos, de um azul profundo, dos quais saía uma
luz que envolvia sua barba numa aura azulada, razão do apelido.
Barbazul era um homem rico. Vivia num
castelo. Numa das extremidades dele havia uma torre de sete
patamares, trancados a sete chaves. Era uma torre misteriosa,
interditada ao público, e sobre o que havia nela circulavam as
estórias mais escabrosas.
Barbazul era um homem solitário. Nunca
se casara. Tão bonito, tão rico, por que nunca se casara? – era a
pergunta que todos faziam.
Muitas eram as mulheres, lindas, que por
ele se apaixonavam. E Barbazul não se esquivava. Aceitava as
sugestões contidas nos sorrisos... A princípio era um simples
namorico, os dois passeando pelos bosques. Mas sempre chegava o
momento em que a jovem lhe dizia:
– Gostaria de me casar com você...
– Casamento é coisa muito séria —
dizia Barbazul. — Só devem se casar pessoas que se conhecem
profundamente. E só existe uma forma de as pessoas se conhecerem: é
preciso que vivam juntas. Você viveria comigo, no meu castelo, mesmo
sem nos casarmos? Eu no meu quarto, você no seu... Até nos
conhecermos?
E assim acontecia. A jovem ia viver com
Barbazul no castelo, cada um no seu quarto. Comiam juntos, passeavam,
conversavam. Ele era um homem extremamente fino e delicado. Mas
sempre acontecia a mesma coisa — depois de um mês assim vivendo,
Barbazul se dirigia à jovem:
– Vou fazer uma viagem de sete dias.
Nesses dias você tem permissão para visitar a Torre dos Sete
Patamares. Aqui estão as sete chaves. Durante a sua visita, você
deverá segurar na mão esquerda, fechada com bastante força, a
chave do patamar no qual estiver. Isso é muito importante. Porque as
chaves têm propriedades mágicas...
Com essas palavras, ele partia e a jovem
ficava só, com as sete chaves na mão, e a Torre dos Sete Patamares
a ser visitada.
Transcorridos sete dias, Barbazul
regressava e, após o abraço do reencontro, perguntava:
– Visitou a Torre dos Sete Patamares?
– Sim. Visitei todos os patamares — a
jovem respondia alegremente.
– Você gostou?
– Eu os achei maravilhosos!
Barbazul insistia:
– Todos eles?
– Sim, todos eles...
– Então — concluía com um sorriso —
é hora de me devolver as sete chaves, aquelas que você apertou na
mão esquerda, o lado do coração. Como eu lhe disse, elas são
mágicas. E vão me contar o que você sentiu...
Assentava-se então numa poltrona,
fechava os olhos e segurava as chaves na mão esquerda, uma de cada
vez. A magia das chaves estava nisto: elas o faziam sentir, ao
segurá-las, o mesmo que a jovem havia sentido na sua visita aos sete
patamares da torre.
Só de olhar para o rosto de Barbazul era
possível perceber os sentimentos guardados na chave que segurava.
Eram sentimentos os mais variados, todos os que existem no leque que
vai da alegria à tristeza. As jovens sempre se emocionavam ao
visitar os patamares da torre.
Com uma exceção. Ao segurar a sétima
chave, o sorriso de Barbazul desaparecia e, no seu lugar, apareciam
enfado e tédio. Era isto que a jovem havia sentido no sétimo
patamar: enfado e tédio.
– Não — dizia ele à jovem. — Não
poderemos nos casar. Comigo você será para sempre infeliz. O que há
de mais profundo em mim para você é tédio e enfado.
E, sem outras explicações, levava a
jovem à casa dos pais dela, não sem antes enchê-la dos presentes
que trouxera da viagem.
E era sempre assim.
Foi então que aconteceu. Era o
entardecer, o sol se punha no horizonte. O mar estava
maravilhosamente azul. Barbazul caminhava na praia, como sempre
fazia, pés descalços. Viu, ao longe, uma jovem que caminhava
sozinha, molhando os pés na espuma do mar. Era uma cena linda, digna
de uma tela de Monet: uma jovem sozinha, vestes brancas na areia
branca, contra o azul do céu e o azul do mar... Ela caminhava na
direção dele, distraída. Parecia não vê-lo, tão absorta se
encontrava. Ela se assustou quando o viu.
– Eu a assustei? — ele perguntou.
– Eu estava distraída — ela disse,
desculpando-se.
– Qual é o seu nome?
– O meu nome? Stella Maris.
– Chamam-me de Barbazul, por causa da
cor da minha barba...
Riram. Ela não era bonita. Mas a cena
era bonita, bonitos eram os seus olhos, bonita era a sua voz...
Barbazul ouviu músicas no coração. E foi assim que caminharam
juntos, de pés descalços, ao sol poente — caminhadas que vieram a
se repetir a cada novo dia. Até que, numa delas, Barbazul falou o
que nunca falara:
– Você não quer morar comigo no meu
castelo?
– Você está pedindo que eu me case
com você? — Ela perguntou.
– Não. Estou pedindo que você venha
morar comigo. Depois de morar comigo, quem sabe descobriremos que as
nossas solidões podem caminhar juntas pela vida...
E, assim, Stella Maris foi morar no
castelo do Barbazul. E aconteceu exatamente como acontecera com todas
as outras: passado um tempo, ele anunciou uma viagem de sete dias e
lhe deu as sete chaves, com a mesma recomendação. E partiu.
No primeiro dia, Stella Maris tomou a
primeira chave, abriu a porta do primeiro patamar e segurou
firmemente a chave na mão esquerda. Era um enorme salão de festas,
cheio de gente. A orquestra tocava valsas alegres, e as pessoas
dançavam e riam. Parecia que todos estavam leves e felizes. Ela
também dançou e se sentiu leve e feliz.
No segundo dia, Stella Maris tomou a
segunda chave, abriu a porta do segundo patamar e segurou firmemente
a chave na mão esquerda. Era um salão de banquetes, onde se serviam
as mais deliciosas comidas e se bebiam os vinhos mais caros. Muitos
eram os comensais, mas não tantos quantos havia no salão de festas.
Ela se juntou a eles, assentou-se, comeu, bebeu e se alegrou.
No terceiro dia, Stella Maris tomou a
terceira chave, abriu a porta do terceiro patamar e segurou
firmemente a chave na mão esquerda. Era um parque cheio de crianças,
que brincavam dos mais variados brinquedos: balanço, gangorra, pipa,
pião, cabo de guerra, pau de sebo, perna de pau, pula-corda,
amarelinha, bolinha de gude, boneca, casinha, cabra-cega,
escorregador, pula-sela... Todas riam. Todas estavam felizes. Ela se
sentiu como criança e se juntou a elas, a brincar.
No quarto dia, Stella Maris tomou a
quarta chave, abriu a porta do quarto patamar e segurou firmemente a
chave na mão esquerda. Era uma biblioteca com prateleiras cheias de
livros. Havia livros de todos os tipos: ciência, história,
literatura, poesia, filosofia, humor, mistério, crime, ficção
científica, arte, culinária, sexo, religião... O rosto daqueles
que, assentados às mesas, liam, revelava as emoções que os livros
continham: concentração, excitação, curiosidade, alegria,
tristeza, riso... Ela escolheu um livro de arte, pinturas de Monet.
Vendo as ninfeias de Monet, ela se sentiu leve e diáfana e desejou
ver uma ninfeia num lago...
No quinto dia, Stella Maris tomou a
quinta chave, abriu a porta do quinto patamar e segurou firmemente a
chave na mão esquerda. Era uma catedral gótica. A luz do sol se
filtrava através dos vitrais coloridos, e no silêncio do espaço
vazio se ouvia o “Réquiem”, de Fauré. Não eram muitas as
pessoas que ali estavam. Havia rostos de súplica, rostos de
sofrimento, rostos de paz. Ela foi envolvida pelo silêncio, pelas
cores dos vitrais, pela música... E a sua alma orou, chorou,
agradeceu e sentiu paz.
No sexto dia, Stella Maris tomou a sexta
chave, abriu a porta do sexto patamar e segurou firmemente a chave na
mão esquerda. Era um jardim japonês. Ouvia-se o barulho da água
que caía na fonte, onde nadavam carpas coloridas em meio às
ninfeias. As cerejeiras estavam floridas. Poucas, muito poucas eram
as pessoas que andavam pelo jardim. Ela se assentou sob uma cerejeira
florida e o seu pensamento parou. Não era necessário pensar. A
beleza era tanta que ocupava todo o lugar onde moram os pensamentos.
O paraíso deve ser assim...
No sétimo dia, Stella Maris tomou a
sétima chave, abriu a porta do sétimo patamar e segurou firmemente
a chave na mão esquerda. Era uma ampla sala vazia, na penumbra.
Ninguém, somente ela. O silêncio era absoluto. A solidão era
absoluta. Dois móveis apenas, duas cadeiras. A que se encontrava no
centro da sala era iluminada pela luz das velas de um candelabro que
pendia do teto. Ela se assentou na cadeira que estava num canto, nas
sombras. Foi então que um homem entrou por uma porta nos fundos.
Vinha abraçado com um violoncelo. Sem dizer uma única palavra, ele
se assentou, arrumou o violoncelo entre as pernas, tomou o arco,
concentrou-se e pôs-se a tocar. A melodia, em meio ao silêncio
absoluto, sem nenhum ruído ou fala que a profanasse, era de tal
pureza e pungência que lágrimas começaram a escorrer pelo rosto de
Stella Maris. Sentiu que o seu corpo estava possuído pela beleza.
Era como se ele fosse o instrumento de onde saía a música. Sim, ela
já a ouvira: a “Suíte no 1” em sol maior para violoncelo, de
Bach. Terminada a execução, o artista se levantou e se retirou sem
nada dizer. Stella Maris permaneceu sentada, em silêncio – não
queria que aquele momento terminasse. Queria que ele se prolongasse,
para sempre...
– Então, — disse Barbazul sorridente
— visitou a Torre dos Sete Patamares?
– Visitei — respondeu Stella Maris,
entregando-lhe as chaves.
Barbazul pediu para ficar sozinho e,
reclinando-se com os olhos fechados, foi apertando as chaves,
sucessivamente, com a mão esquerda, a mão do coração. No seu
rosto se estampavam as emoções que Stella Maris havia sentido em
cada um dos patamares: leveza, alegria, riso, beleza, tristeza –
até chegar ao último patamar, aquele cuja chave revelara o tédio e
o enfado que as outras mulheres haviam sentido. O que é que Stella
Maris teria sentido?
De repente, sentiu lágrimas lhe rolarem
pelo rosto, as mesmas lágrimas que haviam rolado pelo rosto de
Stella Maris. Era como se o seu corpo estivesse possuído pela beleza
e fosse o instrumento do qual a música saía...
Barbazul sorriu. Permaneceu sentado, em
silêncio – não queria que aquele momento terminasse. Queria que
ele se prolongasse, para sempre…
– Stella Maris, você quer se casar
comigo? — ele perguntou.
– Casar? Mas eu pensei que...
– Sim, casar. Você compreendeu o que é
a Torre dos Sete Patamares? É a minha alma. Cada patamar é um
pedaço de mim. Lá se encontram os prazeres e alegrias humanos.
Homens, mulheres e crianças se reúnem para compartilhar esses
prazeres e alegrias. Mas, ao final da torre, há um lugar de solidão
absoluta onde só entra uma pessoa de cada vez, com a minha
permissão. Aquele lugar é o fundo do meu coração. Quem não amar
aquele lugar jamais me amará. Poderá até ser uma companheira de
danças, de jantares, de discussões literárias, de brinquedos...
Muitas podem ser boas companheiras. Mas, para me amar, é preciso
amar a minha solidão. E aquela música é a forma sonora da minha
solidão. Você a achou bela. Você permitiu que ela possuísse o seu
corpo. E, por isso, eu a amo... Nossas solidões são amigas... Você
quer se casar comigo?
Rubem Alves, in Cantos do pássaro encantado
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