domingo, 26 de setembro de 2021

No reino da escuridão

Para nós o subsolo é ainda mais desconhecido que o mar. Embora saibamos menos sobre o fundo do oceano do que sobre a superfície da Lua, nossas informações sobre a vida debaixo da terra são ainda mais escassas. Já descobrimos muitas espécies e fatos que originaram bastante material, mas não passa de uma fração mínima em relação à diversidade debaixo dos nossos pés.
Até metade da biomassa de uma floresta se encontra no subsolo, e a maioria dos seres vivos que habitam essa área não pode ser vista a olho nu. Provavelmente por isso não despertam nosso interesse na mesma medida em que, por exemplo, um lobo, um pica-pau ou uma salamandra. Ainda assim, possivelmente são muito mais importantes para as árvores. Uma floresta poderia simplesmente abrir mão dos habitantes de grande porte. Cervos, corças, javalis, animais de rapina e até grande parte dos pássaros não fariam tanta falta ao ecossistema. Mesmo se todos desaparecessem ao mesmo tempo, a floresta continuaria crescendo sem grandes percalços. No entanto, se os seres subterrâneos desaparecessem, a situação seria outra.
Em um punhado de terra de floresta existem mais seres vivos do que o total de seres humanos no planeta. Uma colher de chá contém mais de 1 quilômetro de filamentos de fungos. Todos esses seres trabalham e transformam o solo, tornando-o valioso para as árvores.
Antes de nos atermos a algumas dessas criaturas, vamos voltar ao início da formação do solo. Sem solo não há matas e florestas, pois as árvores precisam se enraizar em algum lugar. As rochas nuas não seriam suficientes, e o cascalho solto até poderia oferecer suporte para as raízes, mas não armazenaria água e nutrientes suficientes para ela. Os processos geológicos (como a Era do Gelo e suas temperaturas extremamente frias) quebraram as pedras, e as geleiras as moeram até virarem areia e pó, de forma que, ao fim, restou um substrato básico solto. Com o derretimento do gelo, a água levou esse material para depressões e vales, ou ele foi arrastado por tempestades e depositado em camadas de muitos metros de espessura.
Tempos depois, a vida surgiu na forma de bactérias, fungos e plantas, que se transformavam em húmus ao morrer. No decorrer dos milênios, as árvores colonizaram esse solo – que só agora pode ser chamado assim – e o tornaram cada vez mais rico. Suas raízes fixaram o solo e o protegeram de chuvas e tempestades, evitando a erosão, um dos maiores inimigos da floresta. Com isso, as camadas de húmus continuaram crescendo e formaram os precursores do linhito (carvão fóssil rico em detritos vegetais).
A erosão é um dos maiores inimigos naturais da floresta. O terreno perde solo sempre que há acontecimentos extremos, sobretudo tempestades. Se o solo florestal não consegue absorver toda a água de imediato, a que sobra escorre pela terra e arrasta partículas, o que é possível observar na época de chuvas: quando a água fica turva e marrom, está carregando um solo valioso.
Em um ano, esse processo pode carregar até 10 mil toneladas de terra por quilômetro quadrado de superfície. Por outro lado, os processos de decomposição formam apenas 100 toneladas a partir das pedras situadas no subterrâneo. Isso provoca uma enorme perda de volume do terreno, até chegar o dia em que sobra apenas cascalho. Atualmente é fácil encontrar áreas formadas por esses solos empobrecidos em muitos pontos das florestas, que, mesmo assim, há séculos vêm sendo usados para a agricultura. No entanto, se a floresta fosse mantida intacta, perderia apenas entre 0,4 e 5 quilômetros quadrados por ano. Com o passar do tempo, o subsolo ficaria cada vez mais rico, proporcionando condições cada vez melhores para o desenvolvimento das árvores.
É nesse ponto que entram os animais que habitam o subsolo, que são fundamentais, mas não são muito bonitos. Além disso, a maioria das espécies não é visível a olho nu, e quando vistos ao microscópio a situação só piora: ácaros, colêmbolos e poliquetas não são tão simpáticos quanto orangotangos ou jubartes. Na floresta, esses seres ínfimos e estranhos formam a base da cadeia alimentar e podem ser considerados o plâncton terrestre. Infelizmente, os pesquisadores não se interessam muito por milhares de espécies descobertas, que têm nomes científicos impronunciáveis em latim. Inúmeras outras esperam em vão que alguém as descubra. Mas talvez isto seja reconfortante: ainda há muitos segredos por descobrir nas florestas próximas da sua casa. Vamos examinar alguns dos poucos que já foram revelados.
Conhecemos mais de mil espécies de oribatídeos, família de ácaros que medem menos de 1 milímetro e parecem aranhas beges e marrons com pernas curtas, por isso se disfarçam bem no solo, seu hábitat natural. Basta ler a palavra ácaro para fazermos associações com os ácaros domésticos, que se alimentam de escamas de pele e outros dejetos e provocam alergias em algumas pessoas. E a verdade é que pelo menos parte desses ácaros produz um efeito semelhante nas árvores. As folhas e os pedaços de casca caídos formariam pilhas de alguns metros de altura se um exército de criaturas milimétricas e famintas que vivem na folhagem caída no solo não os devorasse com avidez.
Outras espécies de ácaros se especializaram em fungos. Movimentam-se por pequenos túneis no subsolo e se alimentam dos sumos produzidos pelos filamentos finos e brancos dos fungos. Em último caso, alimentam-se do açúcar das árvores, os quais também compartilham com os fungos parceiros. Seja madeira em decomposição ou caracóis mortos, não há nada que não sirva de alimento para pelo menos uma espécie de ácaro, criatura imprescindível para o ecossistema, pois vive na interseção entre o nascimento e a morte.
Há também o caso do gorgulho, um besouro que lembra um elefante minúsculo sem as orelhas. Os gorgulhos estão entre as famílias de insetos com mais espécies em todo o mundo – só na Europa, são cerca de 1.400. O gorgulho não usa as plantas para absorver nutrientes, mas para proteger a prole. Com a ajuda de seu longo chifre, abre pequenos buracos nas folhas e nos talos, nos quais bota seus ovos. Protegidas de predadores, as larvas podem abrir pequenos dutos nas plantas e crescer com segurança.
Algumas espécies de gorgulho, em sua maioria habitantes do solo, perderam a capacidade de voar, pois se acostumaram ao ritmo lento das árvores e à sua existência quase eterna. Ao longo de um ano inteiro se locomovem no máximo 10 metros, e não é necessário mais que isso. Quando a árvore morre e o ambiente se transforma a seu redor, o gorgulho só precisa se mudar para a árvore ao lado, onde continuará se alimentando da folhagem em deterioração. Quando encontramos esses insetos em uma floresta, já sabemos que ela é antiga e tem um histórico ininterrupto. Se a floresta foi desmatada na Idade Média e replantada depois, não encontramos essa espécie de besouro, pois o caminho até a floresta mais próxima seria longo demais para eles.
Todos os animais que mencionei têm algo em comum: são muito pequenos, por isso têm um raio de ação extremamente limitado. Em florestas grandes e ancestrais que no passado cobriam a Europa Central, isso não tinha importância, mas hoje grande parte das florestas foi alterada pelo homem. Abetos em vez de faias, douglásias no lugar de carvalhos, árvores jovens substituindo antigas: as novas florestas não agradam ao paladar dos animais, que morrem de fome.
No entanto, ainda existem florestas antigas de árvores frondosas, que servem de refúgio para eles e ainda contam com a diversidade de espécies do passado. Órgãos governamentais se esforçam para criar florestas de árvores frondosas, e não de coníferas. Mas, quando as poderosas faias voltarem a ocupar as terras hoje habitadas pelos abetos, como os ácaros e colêmbolos chegarão até elas? Certamente não a pé, pois ao longo da vida eles mal percorrem 1 metro de solo.
Existe a esperança de que um dia possamos nos maravilhar com verdadeiras florestas ancestrais, ao menos nos parques nacionais como a Floresta Bávara. Pesquisas realizadas por universitários na nossa reserva apontaram que animais microscópicos ligados a florestas de coníferas conseguem percorrer distâncias surpreendentemente grandes. A prova são as antigas matas de abetos onde foram encontradas espécies de colêmbolos que se especializaram nesta conífera.
No entanto, os engenheiros florestais que trabalharam anteriormente nessa reserva plantaram essas matas em Hümmel há cerca de 100 anos; antes disso, as faias antigas predominavam na Europa Central. Como esses colêmbolos especializados em coníferas chegaram a Hümmel? Desconfio que talvez tenham sido transportados por pássaros, que os carregaram em suas penas. Como os pássaros gostam de rolar nas folhagens para limpar a plumagem, certamente alguns colêmbolos se penduraram nas penas e foram depositados na outra floresta. Se isso funcionou com os animais especializados em abetos, possivelmente funcionará com espécies especializadas em árvores frondosas.
No futuro, quando houver mais florestas antigas de frondosas que se desenvolvam livremente, os pássaros poderão ser os encarregados do reaparecimento dos inquilinos correspondentes em seu hábitat original. No entanto, isso pode demorar muito, como comprovam os últimos estudos nas cidades de Kiel e Luneburgo.29 Há cerca de 100 anos foram plantadas matas de carvalhos na charneca de Luneburgo, onde antes havia uma plantação comercial. Segundo a hipótese dos cientistas, poucas décadas depois, a estrutura original de fungos e bactérias já deveria ter se restabelecido no solo. No entanto, ainda falta muito para isso acontecer – mesmo depois desse período relativamente longo, ainda existem grandes lacunas no inventário de espécies, e isso gera consequências graves para a floresta, pois os ciclos de crescimento e deterioração não funcionam da maneira correta.
Por outro lado, o solo ainda contém bastante nitrogênio dos antigos fertilizantes, por isso a floresta cresce mais rápido do que outras matas semelhantes em solo florestal antigo, mas é muito mais suscetível, por exemplo, à seca. Ninguém sabe quanto tempo demorará até que se forme um solo florestal autêntico, mas já se sabe que 100 anos não bastam.
Para que haja regeneração, são necessárias reservas com florestas originais, que não sofreram interferência humana. Nesse ambiente, a biodiversidade no solo pode perdurar e servir como célula germinal para a recuperação das regiões próximas, e não é preciso realizar nenhum grande sacrifício para que isso aconteça, como há anos vem provando a comunidade de Hümmel. Antigas matas de faia inteiras foram protegidas e demarcadas de forma diferente: parte é usada como floresta-cemitério, onde arrendamos as árvores como uma lápide viva para o enterro de urnas de cinzas. Tornar-se parte de uma floresta ancestral após a morte – não é uma ideia maravilhosa? Outra área da reserva é arrendada para empresas que contribuem para a preservação do meio ambiente. Dessa forma vale a pena abrir mão da exploração de madeira, e tanto o homem quanto a natureza saem ganhando.

Peter Wollhlleben, in A vida secreta das árvores: O que elas sentem e como se comunicam

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