Era um relacionamento moderno. Daqueles
em que se ama tão desesperadamente quanto na década de 20 – ou
ainda mais –, mas finge-se que não, para evitar a fadiga.
Cada um tinha sua vida: trabalho, ócio,
casos, erros, conta bancária, agenda de domingo. Mas se viam, se
gostavam, se esperavam e esperavam um do outro. Porém, havia a regra
suprema, sublime e subentendida: não haveria amor.
Num final de semana sem importância,
resolveram, com a displicência inerente a tal relação, pegar a
estrada. Foram. Pararam onde lhes pareceu simpático. Desceram as
bolsas, ocuparam um quarto com cama digna de mostruário de cama,
mesa, banho e luxo.
Riam, implicavam um com o outro, jogavam
conversa fora, tomavam cerveja, faziam sexo sem filtros, adormeciam
abraçados, não percebiam o que não queriam perceber.
Acordaram da soneca estendida. 20h26.
Chuveiro, sapatilha, chinelo de couro. Ela disse “vamos?”, ele
foi para a porta, ela ainda precisava passar um perfuminho, pegar uma
pashmina. Ele bufou. Ela resmungou da bufada. E nem assim
assumiam que era amor.
Ocuparam uma mesa de canto. Ela pediu o
que ele chamava de “suco de confusão” – porque ela gostava
mesmo era de abacaxi com hortelã, mas o abacaxi atacava a gastrite,
então pedia melancia com hortelã, e garçom nenhum estava preparado
para isso. Problema, na certa. Ele, ainda sonado, pediu o mesmo, mas
com bastante gelo.
Foi então que aconteceu. Ele falava
sobre o carro novo do irmão enquanto rasgavam pãezinhos mornos para
mergulhar no azeite. Ela alertou “cuidado para não pingar na calça
nova”, ele seguiu discorrendo sobre o valor da entrada na
concessionária, quando a gota de azeite caiu em câmera lenta em
direção à perna direita do tecido cáqui.
Ela, numa fração de segundo, pegou o
guardanapo, friccionou na futura mancha e lamentou: “Amor, eu te
avis… CARALHO. (Três segundos.) Caralho. (Largou o guardanapo,
levou a mão esquerda à lateral do rosto, olhou para a parede,
suspirou.) Te chamei de amor. (Susto.) E NÃO TÔ BEBENDO. Puta
merda. (Não com a cabeça.) Foi mal”.
Ele riu. Não por achar graça, mas
porque rir às vezes funciona. Não funcionou, o clima pesou.
Terminaram o jantar, caminharam um pouco na noite quente, falando
sobre a calvície de um conhecido em comum e outras amenidades.
Ele propôs que se sentassem num bar.
Sauvignon Blanc. Taças. Garrafas, no plural. Foi, foi, foi. Saíram
de lá pisando em favos de algodão. Ela disse “foi mal”. Ele não
entendeu. “Foi mal, te chamei de amor.” Ele “ah… é mesmo.
Sei lá. Acha que vai dar merda?”. “Se for dar, já deu.”
Pausa. Abriram a porta do quarto. Ela se
jogou na cama de comercial. Ele abriu a janela, acendeu o abajur.
“Mas acho que te chamar de amor não
tem nada a ver com amar e tal. É só um… adjetivo. Pronome de
tratamento. Sei lá que merda, mas é só gramática. Não é
sentimento… Não acha?”
“É. Pode ser. Melhor assim. A gente
era um lance. Agora é um lance com gramática.”
Escovaram os dentes para não quebrar o
protocolo. Ele colocou uma garrafa de água em cada mesa de
cabeceira. Hábitos. Ela pegou a camisola florida na bolsa. Levou
aquela porque sabia que era a preferida dele. Ajeitaram-se na cama,
mais abraçados do que nunca. Quase embutidos.
“Boa noite. Amor. Já que tá
liberado.” Riram. “Boa noite, meu amor.”
Ele beijou a testa dela.
Claro que não era amor. Era só
gramática.
Ruth Manus, in Pega lá uma chave de fenda: e outras divagações sobre o amor
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