quarta-feira, 15 de setembro de 2021

Fim do romance

O ano era 2006. O cenário era Paris. Ela usufruía do frescor dos 18 anos recém-completados, da inconsequência e da falta do que fazer. Estudava francês e nada mais durante aqueles abençoados meses. Na verdade, a menina também lavava roupas, trocava a roupa de cama e limpava as janelas, mas isso não é lá muito digno de nota.
Para ser mais específica, o ano era 2006, em plena Copa do Mundo, e o cenário era Paris no verão. Ela, apaixonadíssima pela língua francesa, usufruía do privilégio de aperfeiçoar seu francês de Aliança Francesa com o francês das boulangeries, dos boulevards e dos supermarchés. Era incrível como aquela língua parecia linda até quando a frase era “Não tenho troco para 50”. Ela sempre dizia “Não importa o conteúdo, o francês sempre soa como poesia”.
Tudo ia em clima de lua de mel até que aconteceu a traumática eliminação do Brasil pela França na Copa do Mundo, com um gol de Henry no segundo tempo. Estar em Paris naquela noite não teve nada de romântico. A menina chorou, exagerou na bebida barata e fez DDI para casa dizendo que queria ir embora daquele lugar horrível. Como se diria hoje, white, so white people problem.
Depois a coisa acalmou e tudo seguiu adiante. A França passou para as semifinais e ia jogar com Portugal. Todos os brasileiros tornaram-se ainda mais portugueses do que sempre foram. Vestiu-se de vermelho e verde e foi encontrar os amigos. Disseram que havia um bar com cerveja muito barata em Parmentier. Era razoavelmente perto do Marais, por isso não deveria ser muito ruim. Mas era.
Sentaram-se num bar genuinamente feio e sujo. As televisões eram pequenas e não havia nem porção de batata frita. Tudo bem, com cerveja barata nada pode ser assim tão mau. Seu lugar na mesa ficava espremido entre dois amigos grandalhões e um francês inimigo na mesa ao lado, todos virados de lado para enxergar a televisão.
Ela estava incomodada com o francês. Não apenas por ser francês – o que já era um problema por si só desde o gol do Henry –, mas por usar uma camisa amarela fechada apenas por dois botões na região do umbigo. O resto ficava à mostra: o peito com pelos claros e o fim da barriga, que mais parecia de fim de gestação, até chegar ao cinto marrom.
O homem tomava uma quantidade inimaginável de cerveja, falava alto, abria as pernas até esbarrar nos demais e dava socos na mesa quando se aborrecia com algum lance. Ela estava extremamente incomodada com aquele homem. Mas esse incômodo ia além da sua presença. Era um sentimento difícil de entender.
Conforme o tempo passava e os lances do jogo seguiam, ele gritava mais e mais, sempre utilizando xingamentos franceses que ela conhecia vagamente. Cutucava o dente do fundo com o dedo do meio, tossia sem colocar a mão na frente, uma porcaria. Ela estava quase a ponto de levantar-se dali.
Não entendia bem o porquê de tanto desagrado. Já tinha convivido com coisa pior. Olhou para ele fixamente e foi então que ela percebeu: ele estava estragando a língua francesa. Na boca daquele homem o francês chegava a parecer feio. Parecia deselegante, grosseiro, desagradável. Nem a frase mais bonita de um romance de Stendhal se salvaria naquela boca. Muito menos uma negativa de troco para a nota de 50.
No momento em que Zidane marcou o gol da vitória contra Portugal, ela percebeu que já não havia volta. Era o fim do intocável romance entre ela e o idioma. O francês, até agora casto e intangível, tornou-se humano, terreno, mortal e barrigudo. Não deixou de ser belo, mas passou a ser como todas as outras línguas, nem mais, nem menos. Dizem que os amores incondicionais só duram nessas condições até serem condicionados. Essa era uma dessas ocasiões. Seguiu o amor, mas acabou o romance.

Ruth Manus, in Um dia ainda vamos rir de tudo isso

Nenhum comentário:

Postar um comentário