O ano era 2006. O cenário era Paris. Ela
usufruía do frescor dos 18 anos recém-completados, da
inconsequência e da falta do que fazer. Estudava francês e nada
mais durante aqueles abençoados meses. Na verdade, a menina também
lavava roupas, trocava a roupa de cama e limpava as janelas, mas isso
não é lá muito digno de nota.
Para ser mais específica, o ano era
2006, em plena Copa do Mundo, e o cenário era Paris no verão. Ela,
apaixonadíssima pela língua francesa, usufruía do privilégio de
aperfeiçoar seu francês de Aliança Francesa com o francês das
boulangeries, dos boulevards e dos supermarchés.
Era incrível como aquela língua parecia linda até quando a frase
era “Não tenho troco para 50”. Ela sempre dizia “Não importa
o conteúdo, o francês sempre soa como poesia”.
Tudo ia em clima de lua de mel até que
aconteceu a traumática eliminação do Brasil pela França na Copa
do Mundo, com um gol de Henry no segundo tempo. Estar em Paris
naquela noite não teve nada de romântico. A menina chorou, exagerou
na bebida barata e fez DDI para casa dizendo que queria ir embora
daquele lugar horrível. Como se diria hoje, white, so white
people problem.
Depois a coisa acalmou e tudo seguiu
adiante. A França passou para as semifinais e ia jogar com Portugal.
Todos os brasileiros tornaram-se ainda mais portugueses do que sempre
foram. Vestiu-se de vermelho e verde e foi encontrar os amigos.
Disseram que havia um bar com cerveja muito barata em Parmentier. Era
razoavelmente perto do Marais, por isso não deveria ser muito ruim.
Mas era.
Sentaram-se num bar genuinamente feio e
sujo. As televisões eram pequenas e não havia nem porção de
batata frita. Tudo bem, com cerveja barata nada pode ser assim tão
mau. Seu lugar na mesa ficava espremido entre dois amigos grandalhões
e um francês inimigo na mesa ao lado, todos virados de lado para
enxergar a televisão.
Ela estava incomodada com o francês. Não
apenas por ser francês – o que já era um problema por si só
desde o gol do Henry –, mas por usar uma camisa amarela fechada
apenas por dois botões na região do umbigo. O resto ficava à
mostra: o peito com pelos claros e o fim da barriga, que mais parecia
de fim de gestação, até chegar ao cinto marrom.
O homem tomava uma quantidade
inimaginável de cerveja, falava alto, abria as pernas até esbarrar
nos demais e dava socos na mesa quando se aborrecia com algum lance.
Ela estava extremamente incomodada com aquele homem. Mas esse
incômodo ia além da sua presença. Era um sentimento difícil de
entender.
Conforme o tempo passava e os lances do
jogo seguiam, ele gritava mais e mais, sempre utilizando xingamentos
franceses que ela conhecia vagamente. Cutucava o dente do fundo com o
dedo do meio, tossia sem colocar a mão na frente, uma porcaria. Ela
estava quase a ponto de levantar-se dali.
Não entendia bem o porquê de tanto
desagrado. Já tinha convivido com coisa pior. Olhou para ele
fixamente e foi então que ela percebeu: ele estava estragando a
língua francesa. Na boca daquele homem o francês chegava a parecer
feio. Parecia deselegante, grosseiro, desagradável. Nem a frase mais
bonita de um romance de Stendhal se salvaria naquela boca. Muito
menos uma negativa de troco para a nota de 50.
No momento em que Zidane marcou o gol da
vitória contra Portugal, ela percebeu que já não havia volta. Era
o fim do intocável romance entre ela e o idioma. O francês, até
agora casto e intangível, tornou-se humano, terreno, mortal e
barrigudo. Não deixou de ser belo, mas passou a ser como todas as
outras línguas, nem mais, nem menos. Dizem que os amores
incondicionais só duram nessas condições até serem condicionados.
Essa era uma dessas ocasiões. Seguiu o amor, mas acabou o romance.
Ruth Manus, in Um dia ainda vamos rir de tudo isso
Nenhum comentário:
Postar um comentário