domingo, 5 de setembro de 2021

Cristais partidos

Faz três dias que voltei a entrar, depois de uma longa ausência, em minha casa de Valparaíso. Grandes gretas feriam as paredes. Os cristais estilhaçados formavam um doloroso tapete sobre o chão dos aposentos. Os relógios, também no solo, marcavam teimosamente a hora do terremoto. Quantas coisas belas Matilde varria agora com uma vassoura. Quantos objetos raros que o abalo da terra transformou em lixo.
Temos que limpar, pôr em ordem e começar tudo de novo. Custa encontrar o papel em meio à desordem e depois é difícil ordenar os pensamentos.
Meus últimos trabalhos foram uma tradução de Romeu e Julieta e um longo poema de amor em ritmo antiquado, poema que ficou inconcluso.
Vamos, poema de amor, levanta-te dentre os vidros partidos que chegou a hora de cantar.
Ajuda-me, poema de amor, a restabelecer a integridade, a cantar sobre a dor.
É verdade que o mundo não se limpa de guerras, não se lava de sangue, não se corrige do ódio. É verdade.
Mas é igualmente verdade que nos aproximamos de uma evidência: os violentos se refletem no espelho do mundo e seu rosto não é bonito nem para eles mesmos.
E continuo acreditando na possibilidade do amor. Tenho a certeza do entendimento entre os seres humanos, logrado sobre o sofrimento, sobre o sangue e sobre os cristais quebrados.

Pablo Neruda, in Confesso que vivi

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