Entre 2007 E 2018, 553 mil pessoas foram
assassinadas no Brasil. O total de mortos é maior do que o da Síria,
país que enfrenta há sete anos uma guerra civil e que, segundo
estimativa da Organização das Nações Unidas (ONU), contabiliza
500 mil mortos. Portanto, não surpreende que o tema da segurança
pública tenha ganhado tanta importância nas últimas eleições.
Mas é preciso lembrar que a vítima
preferencial tem pele negra. O Atlas da Violência de 2018, realizado
pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, revelou que a
população negra está mais exposta à violência no Brasil. Os
negros representam 55,8% da população brasileira e são 71,5% das
pessoas assassinadas. Entre 2006 e 2016, a taxa de homicídios de
indivíduos não negros (brancos, amarelos e indígenas) diminuiu
6,8%, enquanto no mesmo período a taxa de homicídios da população
negra aumentou 23,1%. Segundo dados da Anistia Internacional, a cada
23 minutos um jovem negro é assassinado no Brasil, o que evidencia
que está em curso o genocídio da população negra, sobretudo
jovens.
Infelizmente, o assunto só ganha
destaque no debate público quando um caso muito violento chega aos
noticiários, como o brutal assassinato de Evaldo dos Santos por
agentes do Exército, no Rio de Janeiro. No dia 7 de abril de 2019, o
carro em que Evaldo e sua família estavam foi alvejado por
militares. Inicialmente divulgou-se que foram disparados 83 tiros,
mas o total chegou a 257. Na época, muitas pessoas se manifestaram
diante desse absurdo. O que muitas dessas pessoas talvez ignorem é
que esse não foi um caso isolado: ele integra uma política de
segurança pública voltada para a repressão e o extermínio de
pessoas negras, sobretudo homens.
Na maior parte das vezes, o Judiciário é
uma extensão da viatura policial: não se exige uma investigação
detalhada nem se admite o contraditório para quem é acusado pela
seletividade do sistema. No entanto, mesmo com tantos casos
comprovados de abuso policial, que resultam em prisões descuidadas e
injustas, a naturalização dessa violência levou o Tribunal de
Justiça do Rio de Janeiro a ter como súmula—isto é, uma decisão
que de tantas vezes proferida se torna um entendimento
cristalizado—admitir como elemento suficiente para a condenação
apenas a palavra dos policiais que efetuaram a prisão. A conhecida
súmula 80 reflete um entendimento comum a todos os tribunais do
país. Segundo um estudo da Defensoria Pública do Rio de Janeiro e
da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad) do
Ministério da Justiça, entre março de 2016 e janeiro de 2018, os
policiais foram as únicas testemunhas em 71,14% dos processos
envolvendo tráfico. Não se trata aqui de dizer que nenhum policial
é digno de crédito, porém um julgamento não pode se pautar única
e exclusivamente pela palavra de quem prendeu, pois se corre o risco
de tornar o policial juiz e carrasco do caso.
Historicamente, o sistema penal foi
utilizado para promover um controle social, marginalizando grupos
considerados “indesejados” por quem podia definir o que é crime
e quem é o criminoso. No Brasil, foram várias as legislações que
visavam criminalizar a população negra, como a Lei de Vadiagem, de
1941, que perseguia quem estivesse na rua sem uma ocupação clara
justamente numa época de alta taxa de desemprego entre homens
negros.
Hoje, a chamada “guerra às drogas”
serve como pretexto para uma guerra contra a população negra. O
tema se tornou ainda mais urgente após a Lei n. 11.343 de 2006, que
estabeleceu uma diferenciação subjetiva entre traficante e usuário.
O que teoricamente parecia ser um avanço na verdade contribuiu para
a explosão da população carcerária: isso porque quem define quem
é traficante e quem é usuário é o juiz, o que é feito, muitas
vezes, com base na discriminação racial.
Em 2015, um homem negro teve sua
condenação a quatro anos e onze meses de prisão pelo “tráfico”
de 0,02 grama de maconha mantida pelo Superior Tribunal de Justiça.
Ele já havia sido julgado por um juiz de primeira instância e pelo
Tribunal de Justiça de Minas Gerais. O exemplo é ilustrativo da
produção em massa de uma população carcerária condenada por
quantidades muito pequenas de substâncias ilícitas; estão presos,
na verdade, por sua cor. O critério subjetivo acentua a já profunda
discriminação racial. Para comparação, não há violência
policial em ambientes ricos, como festas universitárias, mesmo
sabendo-se do uso de drogas nesses lugares, como ocorre nas
periferias. Há, portanto, um contexto de criminalização da
pobreza.
Sabemos que hoje dois em cada três
presos no Brasil são negros. Sabemos também que o tráfico lidera
as tipificações para o encarceramento: 26% dos homens estão presos
por tráfico, chegando a 62% no caso das mulheres.
Também vale destacar que em quinze anos
a prisão de mulheres aumentou 567,4%. Segundo o relatório
“‘MulhereSemPrisão: Enfrentando a (in)visibilidade das mulheres
submetidas à justiça criminal”, desenvolvido pelo Instituto
Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), 68% das encarceradas são negras,
a maioria é mãe, não possui antecedentes criminais e tem
dificuldade de acesso a empregos formais. Como afirma Carla Akotirene
em sua dissertação de mestrado, Ó pa í, prezada! Racismo e
sexismo institucionais tomando bonde no Conjunto Penal Feminino de
Salvador, a prisão precisa ser analisada na contemporaneidade
sobre alicerces interseccionais de raça, classe e gênero. Akotirene
identifica, na perspectiva das mulheres,
um aspecto de sexismo e racismo
institucionais em concordância com a inclinação observada da
polícia em ser arbitrária com o segmento negro sem o menor
constrangimento, de punir os comportamentos das mulheres de camadas
sociais estigmatizados como sendo de caráter perigoso, inadequado e
passível de punição.
Ainda segundo o relatório
“MulhereSemPrisão”, o Poder Judiciário brasileiro prende essas
mulheres sem oferecer medidas alternativas. A feminista e militante
antiproibicionista e antipunitivista Juliana Borges, tomando como
base o trabalho da pesquisadora e advogada Luciana Boiteux, denuncia
violações de direitos humanos contra essas mulheres:
No caso das mulheres, é muito comum o
relato de buscas e “apreensões”, invasões, sem mandado de
busca, em seus domicílios, tortura e humilhação para obter
informações que sequer elas têm conhecimento; relatos de prisão
pela proximidade com algum familiar envolvido com o tráfico; prisões
quando transportando pequenas quantidades, sendo que muitas são
intimidadas a fazer isso. A imensa maioria dessas mulheres é ré
primária, ou seja, jamais teve passagem pelos registros policiais.
Como diz a advogada estadunidense
Michelle Alexander:
A confusão da negritude com o crime
não ocorreu naturalmente. Ela foi construída pelas elites políticas
e midiáticas como parte de um amplo projeto conhecido como Guerra às
Drogas. Essa confusão serviu para fornecer uma porta de saída
legítima para a expressão do ressentimento e do animus antinegros —
uma válvula de escape conveniente agora que as formas explícitas de
preconceito racial estão estritamente condenadas. Na era da
neutralidade racial, já não é permitido odiar negros, mas podemos
odiar criminosos. Na verdade, nós somos encorajados a fazer isso.
Há vários textos para se aprofundar no
debate sobre segurança pública, política de drogas e
antipunitivismo. O tema é complexo, porém é essencial para
entender a realidade do país, especialmente quando temos elementos
que indicam que está ocorrendo um genocídio da população negra.
Numa sociedade violenta como a nossa, é
natural sentirmos medo. Em especial dessa violência generalizada que
o próprio Estado promove—e por isso devemos denunciar a violência
policial. Porém, é muito triste constatar que, por outro lado, o
Brasil é o país onde mais morrem policiais. A maioria deles vem da
classe trabalhadora, muitas vezes dos mesmos lugares onde jovens
negros estão sendo assassinados. Se a polícia é o braço armado do
Estado opressor, é também um dos lados que cai com essa guerra.
Como já afirmou a socióloga Denise
Ferreira da Silva, o assassinato dos jovens negros deveria criar uma
crise ética na sociedade brasileira. No entanto, não há revolta
com tanto sangue derramado, enquanto há enorme comoção na mídia
quando a violência tira a vida de uma pessoa branca. Devemos nos
perguntar por que não se dá o mesmo valor a essas vidas. Nos
Estados Unidos, após a absolvição do policial George Zimmerman,
que matou a tiros o adolescente negro Trayvon Martin, surgiu o
importante movimento Black Lives Matter [Vidas negras
importam]. Em 2014, o grupo ficou conhecido nacionalmente depois das
manifestações contra os assassinatos dos jovens Michael Brown, em
Ferguson, e Eric Garner, em Nova York. Desde então, o movimento vem
fazendo um trabalho de denúncia da violência policial, questionando
políticos e incitando o debate público.
No Brasil, existem vários movimentos e
organizações engajadas em questionar o modelo punitivista e em
combater abusos por parte do Estado, como a Iniciativa Negra, a Rede
de Proteção e Resistência Contra o Genocídio, o projeto
Movimentos, o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), o
Fórum Brasileiro de Segurança Pública, entre outros. Há várias
maneiras de apoiar o trabalho dessas pessoas, quer seja
financeiramente, divulgando as iniciativas ou comparecendo a eventos
e manifestações.
Djamila Ribeiro, in Pequeno manual antirracista
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