É assíduo leitor de blusas, camisas,
saias, calças estampadas. Não lhe escapa um exemplar novo. Parece
desligado, e observa tudo. Segundo ele, as peças de indumentária,
masculina e feminina, ostentando símbolos e nomes de universidades
americanas, manchetes, páginas de jornal, retratos de Pelé e Jimi
Hendrix, apelos ao amor que não à guerra etc., há muito deixaram
de ser originais. Constituem invólucros rotineiros de pessoas de
qualquer idade. A gente estranha é uma camisa inteiramente nua de
dizeres ou figuras, a roupa que não diz nada, só roupa. Hoje, lê-se
mais nos tecidos do que nos livros, e não é ler apenas, é ver
cinema e televisão, pois os corpos, ao se moverem, dinamizam as
figuras estampadas. O que, de um modo ou de outro, contribui para a
cultura de massas. Informa:
— Estou pensando em aproveitar esse
material para fins especificamente didáticos. Através dele, ensinar
geografia, história, matemática, medicina de urgência, imposto de
renda, ortografia desmistificada, essas coisas. O indivíduo cobre-se
e vai distribuindo ciência. Ou aprendendo. Vinte minutos no ônibus
— que aula! Classes ao ar livre, na feira, na fila. Escola
dinâmica.
— Você sozinho é um Mobral 1971.
— Ontem eu li uma calça comprida, de
mulher que à primeira vista não tinha nada de especial. Estava
escrita como tantas outras. Mas o texto (não confundir com textura)
me chamou a atenção. Geralmente, calças e blusas não são
literárias. Trazem notícias, anúncios, slogans, mas versos, ainda
não tinha visto. Pois essa tinha poemas em português, de Camões ao
Vinicius.
— Tomou nota?
— Claro. Aliás, a usuária foi muito
gentil. Percebendo que eu mirava a parte inferior do seu
revestimento, gratificou-me com um sorriso que eu traduzi assim:
“Pode mirar mais”. E eu mirei. Aí, puxei da caneta, e ela sorriu
outra vez, como quem diz: “Pode copiar também”. Copiei.
— Tudo?
— Tudo não. A dona da calça estava
sentada na sala de espera do cinema. Só o que era visível. Depois
se levantou, foi ao bebedouro, deu tempo para eu colher mais alguma
coisa, no ir e vir. Não tive coragem de pedir-lhe que desse umas
voltas. Você compreende: sou tímido.
— Estou vendo.
— Foi a primeira calça literária,
totalmente poética, do meu conhecimento. Feita em São Paulo?
Talvez. Caracteres pretos sobre fundo branco. Versos em todas as
direções. De Bilac, de Cecília, de Bandeira, de Castro Alves, de
Fernando Pessoa. Uma antologia, bicho. Sem ordem, naturalmente.
Escuta aí: Onde vais à tardezinha, morena flor do sertão? O que eu
adoro em ti é a vida. Aqui outrora retumbaram hinos. Oh abelha
imaginativa! o que o desejo inventa… Vou-me embora pra Pasárgada.
Amor é fogo que arde sem se ver. Ninguém sonha duas vezes o mesmo
sonho. No monte de amor andei, por ter de monteiro fama, sem tomar
gamo nem gama. Clorindas e Belindas brincam no tempo das berlindas.
Eu tenho amado tanto e não conheço o amor. Estrela Vésper do
pastor errante. ‘Tamos em pleno mar: dois infinitos ali se alteiam…
— Beleza.
— Não é? Tem mais. Transforma-se o
amador na coisa amada. Antônia, você parece uma lagarta listrada.
D. Janaína, rainha do mar, dai-me licença para eu também brincar
no vosso reinado. Por que não nasci eu um simples vaga-lume? Não
queiras indagar do meu segredo. Mas que seja infinito enquanto dure.
Cantando espalharei por toda parte. Tudo não escondido perde a
graça. O cinamomo floresce em frente do teu postigo. Crisântemo
divino aberto em meio da solidão… Tinha uma pedra no meio do
caminho.
— Isso já é prosa, amizade.
— É mesmo. Em todo caso, trata-se da
primeira calça poética luso-brasileira. Os poetas que tratem de
defender seus direitos autorais. A menos que considerem uma honra
vestir de versos as mulheres.
Carlos Drummond de Andrade, in De notícias e não notícias faz-se a crônica
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