Galeria Stvdivs, em Laranjeiras. Hora
quase sem movimento. Entra um senhor de cabelos grisalhos e percorre
lentamente a exposição de bonecas do século XIX. Para mais tempo
diante da peça no 14, examinando-a com atenção. Fala sozinho:
— Deve ser essa.
Faz um gesto de carinho no ar, como se
tivesse a boneca no colo, e repete:
— Tenho quase certeza de que é essa.
Passeia os olhos em redor, à procura de
alguém. Aproxima-se uma jovem, que pergunta:
— O senhor deseja alguma coisa?
— Desejo sim. Pode me informar se essa
boneca anda?
— Pois não. Embora não tenha pernas
articuladas, ela anda. E tem choro.
— Choro? Tem certeza de que ela chora,
em vez de rir?
— Olhe, cavalheiro, nunca vi boneca
dando risada. E esta não é a única chorona da coleção, veja bem.
A de no 7, do fabricante alemão Handwerk, também tem choro, se o
senhor puxar o fio.
— A vida é dura também para as
bonecas, eu sei. Pois olhe, estava quase jurando que esta ria. Não
estrondosamente, é claro, mas ria. É tão parecida, se não for a
mesma.
— Parecida com qual?
— Com outra do mesmo tipo, mesmos
cabelos, que comprei há muitos anos numa loja de antiguidades da rua
Chile. A loja do Marques dos Santos, lembra-se?
— Acho que não sou desse tempo… O
professor Marques dos Santos, é?
— Ele mesmo. Uma boneca francesa como
essa aí, com assinatura incompleta.
— Essa também tem assinatura
incompleta: Paris 501.
— Então é a mesma!
— Perdão, esta pertence a d. Sylvie
Renault, e veio diretamente da Europa.
— A senhorita garante que veio
diretamente?
— É o que está na ficha. Não há
razão para duvidar.
— Não estou duvidando. Estou
procurando me esclarecer.
— Desculpe, mas que interesse tem o
senhor nisso?
— A senhorita vai zombar de mim se eu
lhe disser.
— Absolutamente. Pode falar à vontade.
— A senhorita acredita… na alma das
bonecas?
— Hem?
— Eu não disse que ia zombar? Estou
vendo pelo seu sorriso.
— Bem, achei a pergunta engraçada, mas
não tive intenção de zombaria.
— Todos acham a pergunta engraçada.
Por isso mesmo eu não a faço mais a ninguém. Agora, no meio de
tantas bonecas, e vendo o seu interesse em me ser útil, eu me
animei… Desculpe, estamos conversados.
— Não. Continue. Fale na alma.
— Das bonecas? Aquela a que me refiro
tinha alma, uma alma especial, própria de boneca, isso tinha.
— O senhor a comprou para sua filha, ou
era colecionador?
— Nunca tive filha e nunca fui
colecionador de nada.
— E então?
— Então, comprei a boneca exatamente
porque não tinha filha nem filho. E também porque ela me pediu que
a levasse.
— A boneca? Pediu de que maneira?
— Senti que ela me pedia, menos pelos
olhos, que se moviam docemente, sem parecer mecânicos, do que pelo
ar, entende? Ar muito especial, de esperança, de desejo triste. Acha
que estou mentindo?
— Eu não disse nada.
— Não disse, mas está achando. É
natural. Todos acham. Mas senti que a boneca precisava de mim, como
eu, de repente, comecei a precisar dela. Levei-a para casa, minha
mulher achou ridículo, fez uma cena.
— Por tão pouco.
— A partir daí, não nos entendemos
mais, eu e minha mulher. Tentei convencê-la de que a boneca devia
nos aproximar, em vez de nos dividir. Que era uma espécie de filha,
representando a que não tivemos. E como filha a tratei sempre, o que
mais irritava minha mulher, incapaz de nos compreender, a mim e à
boneca.
— Estou imaginando as consequências.
— Bem, acabou em separação e
desquite.
— O senhor ficou com a boneca.
— Eu tinha que ficar com ela, não
havia outra solução. Passou a ser para mim um resumo da filha que
não nasceu, da mulher que foi embora, das mulheres em geral. Sentia
amor e respeito, amor e devoção. E a pobrezinha chorava.
— Mas isso não é comum nas bonecas?
— Nela era diferente. Era choro humano,
e chorava por mim. O choro me impressionava, me doía. Eu não a
fizera feliz. Comecei a reeducá-la. Levei-a a passeio, viajei,
viajamos. Queria ensiná-la a sorrir. Custou, mas consegui. Esse dia
foi uma festa, pulei e cantei de felicidade. Daí por diante, ela
parecia outra. Sorria, ria, não estou mentindo não, que interesse
tenho em mentir? Vivemos felizes algumas semanas, as mais belas de
minha vida. Até que um dia…
— Um dia…?
— Ela também foi embora. Com seus
próprios pés, com suas pernas desarticuladas.
— Furtada, talvez.
— Não houve furto. Nenhum sinal de
ladrão. O apartamento, rigorosamente fechado. Fugiu. Tenho certeza
que fugiu, talvez porque só ficara alegre para me contentar, e era
uma boneca que não fora feita, melhor, que não nascera para ser
alegre.
Fez uma pausa. Olhou uma última vez para
a boneca no 14:
— Procurei-a por toda parte. Como ia
achar uma boneca fugida no Rio de Janeiro? Hoje, lendo a notícia
desta exposição, vim aqui espiar, reparar. Pensei que fosse aquela.
Não é. Muito obrigado, senhorita. Nunca se encontra uma boneca
fugida, cuja natureza tentamos modificar.
Carlos Drummond de Andrade, in De notícias e não notícias faz-se a crônica
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