A importância de Lambari na minha
infância se deve a uma ação do meu irmão Ismael, em claro desafio
à autoridade de minha mãe. Mas, para chegar a esse acontecido, é
preciso começar longe.
A psicanálise ensina que, para se
descobrir segredos, é preciso prestar atenção a pequenas coisas a
que ninguém atribui importância. Por exemplo: aqui, na cidade onde
vivo, Campinas, há pessoas que falam “casa de Aurélia”, “o
livro de Pedro”, “o aniversário de Margarida”... Quando ouço
esse “de” já sei que se trata de pessoa ligada à nobreza dos
grandes barões do café. E me cubro de cerimônias por me sentir na
sala de visitas de um casarão colonial... É nesse insignificante
“de” que se encontra a revelação.
Pois as diferenças entre a família do
meu pai e a família de minha mãe se revelam no insignificante e
banalíssimo ato de chupar laranja. Ah! Vocês pensavam que uma
laranja é simplesmente uma laranja! Não é não. Laranjas do mesmo
pé podem ser nobres ou plebeias. Depende do jeito como são comidas.
A família de minha mãe chupava laranja de gomo, a família do meu
pai chupava laranja de tampa. Você pode imaginar uma senhora da alta
sociedade chupando laranja de tampa num jantar? Jamais! Chupar
laranja de tampa é coisa de plebeus: a laranja enfiada entre os
beiços e os dentes, comprimida pelas mãos para lhe extrair o caldo,
as sementes enchendo a boca para serem cuspidas para o lado. Pode-se
dizer que chupar laranja de tampa é gostoso e descontraído. Mas
elegante é que não é. Laranja de tampa pode-se chupar de pé e
mesmo andando. O que não é possível fazer quando se chupa uma
laranja de gomo. Há duas formas de se chupar uma laranja de gomo. A
primeira, plebeia, consta das seguintes operações. Descascar a
laranja. Tirar a pele branca que cobre os gomos. Abrir a laranja em
duas. Ir enfiando os gomos um a um na boca para serem mastigados, o
caldo engolido, as sementes cuspidas e o bagaço engolido ou cuspido,
conforme o gosto ou as necessidades da pessoa. Digo “necessidades”
porque há pessoas que engolem o bagaço por ordem médica, por causa
da prisão de ventre. A segunda, nobre, é diferente. É preciso
estar assentado à mesa. Primeiro é o cuidadoso ato de descascar.
Descascada a laranja segue-se a operação de retirar-lhe a película
branca que a cobre. A seguir, abre-se a mesma em duas metades e
separam-se os seus gomos. Tomam-se então os gomos, um a um, e
vagarosamente executa-se a operação cirúrgica de retirar a pele
translúcida em que vêm revestidos, o que se faz por meio de uma
incisão ao longo da linha fina do gomo. Desnudados os gomos,
retiram-se-lhes com a ponta da faca os caroços, que são colocados
num prato. Finalmente, come-se a sua carne enquanto se conversa. É
trabalhoso comer uma laranja de gomo. Trata-se de um elaborado
strip-tease. Todos da família da minha mãe comiam as
laranjas de gomo, do jeito nobre. Curioso sobre esse costume,
procurei explicações com a minha mãe. Ela me respondeu: “É para
aproveitar melhor”. De fato, aproveita-se melhor. Mas eu não via
razão para se aproveitar tanto, quando as laranjeiras estavam cheias
de laranjas que se perdiam, comidas pelos passarinhos e insetos e
apodrecidas no chão. Não, não fazia sentido. Essa estória de
“aproveitar melhor” só faz sentido quando laranjas são poucas e
raras, frutas nobres e caras, possivelmente importadas... Mas lá no
interior de Minas não se importavam laranjas, não eram raras nem
eram caras. Havia um descompasso entre a abundância das laranjas e a
necessidade de comê-las de sorte a aproveitar todas as suas
garrafinhas. Se você não sabe, as garrafinhas de uma laranja são
aquelas minúsculas gotas de caldo que compõem o gomo. Isso não era
costume brasileiro. Era costume que vinha das cortes reais da Europa.
Lá os nobres, ricos, comiam caras laranjas importadas, de gomo,
elegantemente. O povo pobre não comia laranjas, talvez nem soubesse
o que eram laranjas... Assim, ao comer as laranjas de gomo, os
membros da família de minha mãe anunciavam suas origens de sangue
azul.
A família do meu pai, que chupava
laranjas de tampa, nada tinha de nobreza. Era gente comum, sem
etiquetas. Mas a família da minha mãe se julgava diferente, era de
“sangue azul”, e se meu avô permitiu que minha mãe se casasse
com o meu pai, acho que foi porque meu pai era rico. O dinheiro faz
perdoar um homem que chupa laranjas de tampa... Referiam-se
desdenhosamente às pessoas da “prateleira de baixo” e, quando
uma delas tinha antecedentes negros, coçavam discretamente a
bochecha com o dedo indicador — gesto que era conhecido de todos —
para advertir quem não soubesse: “Tem sangue de preto...” .
Havia vários outros artifícios para
estabelecer com clareza sua superioridade sobre a plebe. Um deles
eram os nomes que se davam aos filhos. A plebe batizava seus filhos
de João, José, Antônio, Manuel, Maria, Conceição, Tereza, nomes
vulgares que logo eram reduzidos a apelidos. Mas, para que não
houvesse confusões, nossa diferença nobre já estava anunciada em
nossos nomes: Aloísio, Augusto, Silvestre, Jorge, Eugênio, Noêmia,
Eliza, Delminda...
Uma outra marca de nobreza estava nas
roupas que tínhamos de vestir. Os meninos da plebe muito cedo
começavam a usar calças compridas. Mas a família da minha mãe
achava que os filhos nobres tinham de usar calças curtas. Meu irmão
me contou da sua vergonha: já tinha catorze anos, suas pernas eram
peludas e tinha de usar calças curtas. Ele andava pelas ruas se
espremendo contra as paredes para que ninguém o visse. Naqueles
tempos, filho não tinha vontade. Minha mãe se justificava dizendo
que os meninos do Rio de Janeiro usavam calças curtas.
Foi muito depois, no Rio de Janeiro, que
descobri que a razão era outra. Mãe que tem filho de calças curtas
é mulher jovem. A idade de uma mulher se media pelo comprimento das
calças do filho... Eu tinha doze anos. Só usava calças curtas. Meu
pai e minha mãe me levaram para comprar um terno. Em tudo eu era
apenas um observador. Minha mãe pediu um terno de calças curtas. O
vendedor respondeu que, para um jovem da minha idade, não havia
ternos de calças curtas. Ri de felicidade! Finalmente iria realizar
o meu desejo de ter um terno de calças compridas! Concluída a
compra, minha mãe disse ao vendedor: “Por favor, mande cortar as
pernas...” . O remédio era continuar a usar as calças compridas
de brim cáqui do uniforme da escola. Ela não podia mandar cortar as
pernas das calças do uniforme...
Na família do meu pai as portas da rua
das casas tinham um buraco pelo qual se passava um barbante amarrado
ao trinco. Não era preciso bater. Bastava puxar o barbante que a
porta se abria e a pessoa podia entrar pela casa indo até a cozinha,
onde havia sempre uma cafeteira sobre a chapa do fogão de lenha. No
sobradão do meu avô ninguém passava da sala de visitas, que ficava
na frente, ao fim da escadaria. Era lá que as visitas eram
cerimoniosamente recebidas e confinadas.
Mas, de todas as marcas de nobreza, havia
uma que me humilhava mais: os meninos da plebe tinham os seus cabelos
raspados à escovinha, com uma franja na testa. Como tínhamos de nos
diferenciar dos meninos da “prateleira de baixo”, nosso cabelo
havia de ser comprido. O que era motivo de muita vergonha porque,
naqueles tempos, cabelo comprido era coisa de menina. Cabelo comprido
e calças curtas: era demais...
Aconteceu que o meu irmão Ismael, já
moço, já havendo ultrapassado a humilhação das calças curtas, já
havendo ultrapassado a humilhação do cabelo comprido, veio nos
visitar. Ele estava no internato do Instituto Gammon, em Lavras. Ele
não disse nada. Me pegou pela mão e disse: “Vamos passear!”. Ao
passar por uma barbearia, ele entrou, assentou-me na cadeira e
ordenou ao barbeiro: “Escovinha”…
Rubem Alves, in O velho que acordou menino
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