A morte da verdade (1814), de Francisco Goya
Dois dos regimes mais abomináveis da
história da humanidade chegaram ao poder no século XX, e ambos se
estabeleceram com base na violação e no esfacelamento da verdade,
cientes de que o cinismo, o cansaço e o medo podem tornar as pessoas
suscetíveis a mentiras e falsas promessas de líderes determinados a
alcançar o poder incondicional. Como Hannah Arendt escreveu em seu
livro de 1951, Origens do totalitarismo: “O súdito ideal do
governo totalitário não é o nazista convicto nem o comunista
convicto, mas aquele para quem já não existe a diferença entre o
fato e a ficção (isto é, a realidade da experiência) e a
diferença entre o verdadeiro e o falso (isto é, os critérios do
pensamento).”
O alarmante para o leitor contemporâneo
é que as palavras de Arendt soam cada vez menos como um comunicado
do século passado e mais como um terrível reflexo do panorama
cultural e político em que vivemos hoje — um mundo no qual as fake
news e as mentiras são divulgadas em escala industrial por
“fábricas” de trolls russos, lançadas num fluxo
ininterrupto pela boca e pelo Twitter do presidente dos Estados
Unidos, e espalhadas pelo mundo todo na velocidade da luz por perfis
em redes sociais. O nacionalismo, o tribalismo, a sensação de
estranhamento, o medo de mudanças sociais e o ódio aos estrangeiros
estão novamente em ascensão à medida que as pessoas, trancadas nos
seus grupos partidários e protegidas pelo filtro de suas bolhas, vêm
perdendo a noção de realidade compartilhada e a habilidade de se
comunicar com as diversas linhas sociais e sectárias.
No entanto, não quero fazer uma analogia
direta entre as circunstâncias atuais e os horrores opressivos da
época da Segunda Guerra Mundial, apenas olhar para determinadas
condições e atitudes — ao comentar as obras de George Orwell 1984
e A revolução dos bichos, Margaret Atwood as chamou de
“sinais de alerta” — que tornam um povo suscetível à
demagogia e à manipulação política, e transformam uma nação
numa presa fácil para os aspirantes a autocratas. Quero examinar
como o descaso pelos fatos, a substituição da razão pela emoção,
e a corrosão da linguagem estão diminuindo o valor da verdade, e o
que isso significa para os Estados Unidos e para o mundo.
“O historiador sabe o quão frágil é
a tessitura dos fatos no cotidiano em que vivemos”, escreveu Arendt
em 1971, no ensaio “A mentira na política”. “Ela está sempre
correndo o risco de ser perfurada por uma única mentira ou
despedaçada pela mentira organizada de grupos, países ou classes,
ou negada e distorcida, muitas vezes cuidadosamente acobertada por
calhamaços de mentiras, ou simplesmente autorizada a cair no
esquecimento. Fatos necessitam de testemunhos para serem lembrados, e
de testemunhas confiáveis para serem oficializados, de modo a
encontrar um lugar seguro para habitar o domínio dos interesses
humanos.”
O termo “declínio da verdade” (usado
pelo think tank Rand Corporation para descrever “o
enfraquecimento do papel dos fatos e análises” na vida pública
norte-americana) entrou para o léxico da era da pós-verdade, que
inclui também expressões agora corriqueiras como “fake news”
e “fatos alternativos”. E não só as notícias são falsas:
também existe a ciência falsa (produzida por negacionistas das
mudanças climáticas e anti-vaxxers, os ativistas do
movimento antivacina), a história falsa (promovida por revisionistas
do Holocausto e supremacistas brancos), os perfis falsos de
norte-americanos no Facebook (criados por trolls russos) e os
seguidores e “likes” falsos nas redes sociais (gerados por
bots).
Trump, o 45º presidente dos Estados
Unidos, mente de forma tão prolífica e com tamanha velocidade que o
The Washington Post calculou que ele fez 2.140 alegações
falsas ou enganosas no seu primeiro ano de governo — uma média de
quase 5,9 por dia. As mentiras dele — sobre absolutamente tudo,
desde as investigações sobre a interferência russa nas eleições,
passando por sua popularidade e suas conquistas, até o tempo que
passa vendo TV — são apenas o mais espalhafatoso entre os vários
sinais de alerta acerca de seus ataques às instituições
democráticas e normas vigentes. Ele ataca rotineiramente a imprensa,
o sistema de justiça, as agências de inteligência, o sistema
eleitoral e os funcionários públicos responsáveis pelo bom
funcionamento do governo norte-americano.
Entretanto, os ataques à verdade não
estão limitados aos Estados Unidos. Pelo mundo todo, ondas de
populismo e fundamentalismo estão fazendo com que as pessoas
recorram mais ao medo e à raiva do que ao debate sensato, corroendo
as instituições democráticas e trocando os especialistas pela
sabedoria das multidões. Alegações falsas sobre as relações
financeiras do Reino Unido com a União Europeia (em anúncios da
campanha do partido Vote Leave
num ônibus) ajudaram a mudar a votação em favor do Brexit; e a
Rússia intensificou a propagação da sua dezinformatsiya
durante as campanhas eleitorais na França, na Alemanha, na Holanda e
em outros países, em esforços orquestrados de propaganda para
desacreditar e desestabilizar democracias.
O papa Francisco nos lembra: “Não
existe desinformação inofensiva; acreditar na falsidade pode ter
consequências calamitosas.” O ex-presidente Barack Obama comentou
que “um dos maiores desafios que temos em nossa democracia é o
fato de não compartilharmos a mesma base de fatos” — atualmente
as pessoas estão “operando em universos de informação
completamente diferentes”. E o senador republicano Jeff Flake fez
um discurso no qual alertou que “2017 foi o ano em que nós vimos a
verdade — objetiva, empírica, baseada em evidências — ser mais
agredida e atacada do que em qualquer outro período da história
norte-americana, por meio das mãos da figura mais poderosa do nosso
governo”.9
Como isso aconteceu? Quais são as raízes
da falsidade na era Trump? Como a verdade e o bom senso se tornaram
espécies ameaçadas de extinção, e o que sua morte iminente sugere
para o futuro do nosso discurso público, da nossa política e dos
nossos governantes? Esse é o tema deste livro.
* * *
É muito fácil encarar Trump — um
candidato que baseou sua carreira política no pecado original do
nascimentismo (ou birtherism) — como um cisne negro que
conquistou seu cargo graças a uma soma perfeita de fatores: um
eleitorado frustrado ainda se recuperando da ressaca da crise
financeira de 2008; a interferência dos russos na eleição com uma
enxurrada de fake news a favor dele nas redes sociais; uma
oponente altamente polarizada que simbolizava a elite de Washington,
acusada pelos populistas; e uma publicidade espontânea estimada em 5
bilhões de dólares graças à cobertura dos veículos de imprensa
obcecados com as visualizações e os cliques gerados pelo ex-astro
de reality show.
Se um escritor criasse um vilão como
Trump — uma personificação megalomaníaca e extravagante do
narcisismo, mendacidade, ignorância, preconceito, grosseria e
demagogia com impulsos tirânicos (isso sem falar que é alguém que
consome até uma dúzia de Coca-Cola diet por dia) —, seria acusado
de ter produzido um personagem muito fantasioso ou sem nenhuma
verossimilhança. Na verdade, o presidente dos Estados Unidos
frequentemente se apresenta como um personagem menos convincente do
que seria uma mistura de Ubu Rei, Triumph the Insult Comic Dog e um
personagem descartado de Molière.
No entanto, por mais que a personalidade
de Trump possua traços cômicos, não devemos nos cegar diante das
consequências tremendamente sérias de seus ataques à verdade e ao
Estado de direito, que evidenciam a vulnerabilidade de nossas
instituições e comunicações digitais. Um candidato tão exposto
durante a campanha por seu histórico de mentiras e práticas
comerciais enganosas dificilmente conseguiria tanto apoio popular se
setores do público não tivessem adotado uma postura um tanto quanto
blasé em relação à verdade. É inegável que existem problemas
sistêmicos em relação ao modo como as pessoas obtêm as
informações e como passaram a pensar de forma cada vez mais
polarizada.
Com Trump, a esfera pessoal é política
e, em muitos sentidos, ele é menos uma anomalia caricata e mais um
bizarro epítome de uma série de atitudes mais amplas e interligadas
que corroem lentamente a verdade nos dias de hoje, desde a mistura do
noticiário e da política com o entretenimento até a polarização
tóxica que tomou conta da política norte-americana, passando pelo
crescente desprezo populista em relação ao conhecimento
especializado.
Essas atitudes, por sua vez, são
símbolos das dinâmicas que foram ganhando corpo por anos a fio,
criando um ambiente perfeito no qual Veritas, a deusa da Verdade
(conforme foi retratada por Goya na famosa gravura Murió la
Verdad), poderia adoecer e cair morta.
Já faz décadas que a objetividade —
ou mesmo a ideia de que as pessoas desejam conhecer a melhor verdade
disponível — está fora de moda. A famosa frase do ex-senador
Daniel Patrick Moynihan — “Todo mundo tem o direito de ter suas
próprias opiniões, mas não seus próprios fatos” — é mais
atual do que nunca: a polarização se tornou tão extrema nos
Estados Unidos que os eleitores dos estados de maioria republicana e
dos de maioria democrata estão tendo dificuldades para entrar em
consenso sobre os mesmos fatos. Isso vem acontecendo desde que um
verdadeiro sistema solar de sites de notícias de direita
passou a orbitar a Fox News e o Breitbart News e consolidou sua força
gravitacional sobre a base republicana. E esse cenário vem sendo
exponencialmente acelerado pelas redes sociais, que conectam usuários
que pensam da mesma forma e os abastecem com notícias personalizadas
que reforçam suas ideias preconcebidas, permitindo que eles vivam em
bolhas, ambientes cada vez mais fechados e sem comunicação com o
exterior.
Quanto a isso, o relativismo está em
ascensão desde o início das guerras culturais, na década de 1960.
Naquela época, ele foi abraçado pela Nova Esquerda, ansiosa para
expor os preconceitos do pensamento ocidental, burguês e
primordialmente masculino; e por acadêmicos que pregavam o evangelho
do Pós-modernismo, que argumentava que não existem verdades
universais, apenas pequenas verdades pessoais — percepções
moldadas pelas forças sociais e culturais de um indivíduo. Desde
então, o discurso relativista tem sido usurpado pela direita
populista, incluindo os criacionistas e os negacionistas climáticos,
que insistem que suas teorias sejam ensinadas junto com as teorias
“baseadas na ciência”.
O relativismo, é claro, combina
perfeitamente com o narcisismo e a subjetividade que estão em
expansão, desde “A década do eu”, de Tom Wolfe, até a
autoestima na era das selfies. Não é nenhuma surpresa,
portanto, que o efeito Rashomon — o ponto de vista de que tudo
depende do seu ponto de vista — venha permeando nossa cultura,
desde livros de sucesso como Destinos e Fúrias, de Lauren
Groff, até séries de TV como The Affair, baseados na ideia
de realidades conflitantes e narradores em quem não se pode confiar.
Tenho lido e escrito sobre muitos desses
assuntos nas últimas quatro décadas, desde a ascensão do conceito
de desconstrução e das batalhas acerca do cânone literário nos
campi universitários; debates sobre a releitura ficcional de fatos
históricos em filmes como JFK, de Oliver Stone, e A Hora
Mais Escura, de Kathryn Bigelow; esforços feitos pelos governos
Clinton e Bush para se furtar à transparência e definir a realidade
em seus próprios termos; a guerra de Donald Trump contra a linguagem
e seus esforços para normalizar o anormal; e a influência da
tecnologia na forma como processamos e compartilhamos informações.
Nestas páginas pretendo recorrer à leitura de livros e da realidade
atual para ligar alguns pontos acerca dos ataques à verdade e
situá-los num quadro mais amplo de dinâmicas sociais e políticas
que vêm se infiltrando em nossa cultura há anos. Também pretendo
chamar a atenção para alguns livros e artigos proféticos do
passado, que ajudam a entender melhor o dilema em que nos encontramos
hoje.
A verdade é um dos pilares da
democracia. Como observou a ex-procuradora-geral interina Sally
Yates, a verdade é uma das coisas que nos separam de uma autocracia:
“Nós podemos — e devemos — debater políticas e questões, mas
esses debates devem se basear em fatos em comum, e não em apelações
baratas à emoção e ao medo na forma de mentiras e de uma retórica
polarizante.”
“Não apenas existe uma verdade
objetiva, como deixar de dizê-la é uma questão importante. Não
temos como controlar se os agentes públicos mentem para nós. Mas
temos como controlar se eles devem responder por essas mentiras ou se
então, seja por exaustão ou para proteger nossos interesses
políticos, vamos olhar para o outro lado e igualar a indiferença à
verdade.”
Michiko Kakutani, in A morte da verdade – Notas sobre a mentira da era Trump
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