Historicamente, a branquitude desenvolveu
métodos de manutenção do que seria politicamente correto em
relação à pauta racial e à reserva de espaço para o “negro
único”, o que é certamente uma de suas estratégias mais
clássicas. Argumenta-se da seguinte forma: “Veja só, não somos
racistas, temos o Fulano, que é negro, trabalhando em tal
departamento e, inclusive, ele adora trabalhar aqui, não é mesmo,
Fulano?”. E o Fulano, talvez para manter seu emprego, talvez por
que aprendeu a reproduzir o discurso da empresa, concorda.
No entanto, pessoas negras não são
todas iguais, e Fulano, por melhor que seja, não pode representar
todos os negros. Dessa forma, é preciso romper com a estratégia do
“negro único”: não basta ter uma pessoa negra para considerar
que determinado espaço de poder foi “dedetizado contra o racismo”.
A herança escravista faz com que o mundo do trabalho seja
particularmente racista— o que também o torna um dos espaços em
que a luta antirracista pode ser mais transformadora. A primeira
etapa para isso é sempre questionar o statu quo: essa é a
melhor maneira de não reproduzir as variadas formas de racismo nos
ambientes de trabalho.
Se você tem ou trabalha numa empresa,
algumas questões que você deve colocar são: Qual a proporção de
pessoas negras e brancas em sua empresa? E como fica essa proporção
no caso dos cargos mais altos? Como a questão racial é tratada
durante a contratação de pessoal? Ou ela simplesmente não é
tratada, porque esse processo deve ser “daltônico”? Há, na sua
empresa, algum comitê de diversidade ou um projeto para melhorar
esses números? Há espaço para um humor hostil a grupos
vulneráveis? Perguntas desse tipo podem servir de guia para uma
reavaliação do racismo nos ambientes de trabalho. Como diz a
pesquisadora Joice Berth, a questão, para além de
representatividade, é de proporcionalidade.
Para começar, pensemos nos processos de
contratação. Se uma empresa está focada em quem cursou
universidades de elite ou tem inglês fluente, isso pode significar
que apenas pessoas privilegiadas poderão enviar seus currículos,
pois sabemos que, no Brasil, estudar outro idioma ou fazer um
intercâmbio não é acessível para todo mundo. Somente uma parcela
privilegiada da sociedade tem acesso a isso. Além do mais, o pacto
narcísico da branquitude — expressão desenvolvida por Cida Bento
em sua tese de doutorado, usada para definir como pessoas brancas
anuem entre si para a manutenção de privilégios — colabora com a
exclusão de outros grupos nas indicações de trabalho.
Uma pesquisa do Centro de Estudos das
Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert) — organização
indispensável para a luta antirracista, criada por Cida Bento, em
1990 —, em parceria com a Aliança Jurídica pela Equidade Racial,
apontou que pessoas negras não somam 1% entre advogados e sócios de
escritórios de advocacia. Entre estagiários, não chega a 10%. O
estudo, de 2019, ouviu 3624 pessoas em nove das maiores bancas de São
Paulo e demonstra como os números refletem a necessidade de discutir
desigualdades, oportunidades e diversidade no mercado de trabalho.
Se quisermos pensar essa questão pelo
viés econômico, vale lembrar que uma equipe diversificada aumenta
seu potencial produtivo: segundo estudiosos do tema, como Reinaldo
Bulgarelli, um ambiente diverso estimula a criatividade.
A baixa presença de pessoas negras no
ambiente de trabalho, ou mesmo distantes de cargos de gerência, pode
deixar o espaço altamente suscetível a violências racistas. Em um
caso recente, por exemplo, a filial brasileira de uma empresa
norte-americana de software promoveu um baile à fantasia como
celebração de final de ano, oferecendo uma premiação para a
melhor fantasia, no valor de 3 mil reais. Um funcionário, certo de
que seria engraçado, optou pela representação racista de um homem
negro sexualizado, com um órgão genital grande, uma imagem que
circulava na época entre grupos de WhatsApp. A foto de sua fantasia,
que ficou em quarto lugar no concurso, chegou à sede
norte-americana, que demitiu o empregado. O gerente da área em que
ele trabalhava disse que a demissão havia sido exagerada, o que o
fez ser demitido também. Então, o presidente da filial brasileira
defendeu os dois, dizendo se tratar de uma “grande brincadeira”.
Resultado: também foi demitido. O que é notável nesse episódio é
como o caso foi conduzido e a grande repercussão, mas a agressão
propriamente dita é, infelizmente, apenas uma variante das muitas
formas de violência a que pessoas negras são expostas ainda hoje
nos ambientes de trabalho.
A experiência internacional é rica em
exemplos que podem servir de inspiração. Na Noruega, todas as
empresas nacionais destinam 40% dos assentos em conselhos de
administração para mulheres. A proposta veio de um parlamentar do
Partido Conservador, com o argumento: “Se a gente não pensasse em
políticas de reparação e equidade, só contrataria os homens com
os quais a gente joga golfe no domingo”. De fato, se só convivemos
com pessoas de um determinado grupo ou classe social, acreditamos que
só aquelas pessoas possuem capacidade para determinados cargos,
relegando outros grupos a lugares predeterminados, como se não
fossem sujeitos capazes. O que esse político norueguês coloca é a
importância de questionarem desigualdades.
Devemos nos perguntar: quantos talentos o
Brasil perde todos os dias por causa do racismo? A situação é
ainda mais grave para mulheres negras, que são muitas vezes
destinadas ao subemprego: quantas físicas, biólogas, juízas,
sociólogas etc. estamos perdendo? Políticas que obrigam as empresas
a pensar e criar ações antirracistas poderiam reverter esse quadro.
No Brasil, a Lei de Cotas para o Serviço
Público Federal visa diminuir desigualdades. Declarada
constitucional pelo Supremo Tribunal Federal em 2017, ficou
estipulado que
a desequiparação promovida pela
política de ação afirmativa em questão está em consonância com
o princípio da isonomia. Ela se funda na necessidade de superar o
racismo estrutural e institucional ainda existente na sociedade
brasileira, e garantir a igualdade material entre os cidadãos, por
meio da distribuição mais equitativa de bens sociais e da promoção
do reconhecimento da população afrodescendente.
O racismo assume diversas dimensões num
ambiente de trabalho, o que demanda análise constante das práticas
corporativas. Por causa disso, diversas empresas têm buscado
consultorias especializadas para rever sua política de diversidade,
preocupadas em se atualizar em relação aos novos marcos
civilizatórios. Isso é resultado do trabalho de organizações
negras como o Ceert, que lutam há décadas para introduzirem essas
questões urgentes no mercado de trabalho. Há dezenas de
consultorias de diversidade atuando nas várias regiões do Brasil.
Procure conhecer mais sobre elas, informe-se sobre o trabalho do
Ceert, introduza o tema na empresa em que trabalha—assim você
contribui com um ambiente mais diverso, democrático e produtivo.
Djamila Ribeiro, in Pequeno manual antirracista
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