Toda vez que vou dar uma palestra, pode
ser sobre racismo, diversidade ou o pensamento de Simone de Beauvoir,
alguém me pergunta sobre apropriação cultural—mais precisamente,
sobre o uso de turbantes por pessoas não negras. Alguns anos atrás,
houve uma polêmica nas redes sociais, em que uma moça branca
afirmava que um grupo de mulheres negras teria arrancado o turbante
dela à força. Há quem não acredite que a situação tenha se dado
assim, porém, como a história viralizou nas redes sociais, é comum
que as pessoas tenham dúvidas sobre esse tema.
Em primeiro lugar, é importante dizer
que o debate sobre apropriação cultural não deve ser reduzido a
poder ou não usar turbante. A discussão pertinente é aquela que
denuncia o quanto culturas negras e indígenas foram expropriadas e
apropriadas historicamente. Nos processos de colonização, a visão
de cultura do colonizador foi imposta, enquanto bens culturais eram
saqueados. Um exemplo disso são as coleções dos principais museus
da Europa, onde hoje se encontram objetos de diferentes países
africanos, asiáticos e americanos—peças que, com certeza, devem
significar muito para essas culturas. A questão crucial desse debate
é que o interesse pela cultura de certos povos não caminha lado a
lado com o desejo de restituir a humanidade de grupos oprimidos.
Assim, muitas pessoas que consomem cultura negra não se preocupam
com as mazelas que a população negra vive no país. Ou ainda, não
se importam com o embranquecimento dessas culturas. Como bem explica
o antropólogo Rodney William:
apropriação cultural não diz
respeito ao que pode ou não ser usado. Não é sobre branco não
poder usar turbante, cantar samba ou jogar capoeira. A questão da
apropriação cultural é sobre uma estrutura de poder. Há um poder
instituído na sociedade desde a colonização que delega aos
dominantes o direito de definir quem é inferior nessa estrutura e
como se pode dispor de suas produções culturais e até de seus
corpos.
Outro ponto importante é perceber em que
medida um elemento cultural foi esvaziado de sentido. Portanto, é
fundamental debater o papel do capitalismo na perpetuação do
racismo. Por exemplo, uma marca de luxo pode fazer uma coleção de
moda inspirada em elementos da cultura negra, porém só contratar
modelos brancas para o desfile—essas peças chegam ao consumidor já
destituídas de sentido. O debate, dessa forma, precisa ser
estrutural, não individual.
É importante que se tenha uma
preocupação real em não desrespeitar os símbolos de outras
culturas. Para isso, deve-se nutrir empatia pelos diversos grupos
existentes na sociedade, um processo intelectual que é construído
ao longo do tempo e exige comprometimento: quando eu conheço uma
cultura, eu a respeito. Então é essencial estudar, escutar e se
informar.
O debate sobre racismo se mostra urgente
quando falamos de mídia e de acesso a recursos para produções
audiovisuais. No documentário A negação do Brasil, o
diretor Joel Zito Araújo analisa a influência das telenovelas no
imaginário coletivo nacional, enquanto faz uma denúncia contra o
racismo televisivo e o papel estereotipado destinado a atores negros
e atrizes negras. Remontando ao exemplo de black face — isto
é, quando personagens negros são representados por atores brancos
com o rosto pintado — ocorrido na novela A cabana do Pai Tomás,
de 1969, na qual o ator Sérgio Cardoso se pintou de preto para
interpretar o papel do protagonista, o escravizado Tomás, o cineasta
apresenta um panorama do racismo na teledramaturgia brasileira. Na
novela A escrava Isaura, por exemplo, uma adaptação de
Gilberto Braga do romance homônimo de Bernardo Guimarães (1875),
apesar de no livro a personagem-título ser uma mulher negra, a atriz
que a interpretou foi Lucélia Santos, uma mulher branca. O diretor
apresenta muitos casos de racismo e critica o lugar subalterno a que
personagens negros são relegados: para além da reivindicação
justa por representatividade, também se deve questionar o modo como
estamos sendo retratados. Muitas vezes atores negros são contratados
para atuarem como “bandido” ou “bêbado”, no caso dos homens,
ou como empregada doméstica ou a “gostosa”, no caso das
mulheres.
O professor de direito
antidiscriminatório Adilson Moreira identificou os elementos do que
ele chama de racismo recreativo: um “mecanismo que encobre a
hostilidade racial por meio do humor”. No livro que escreveu sobre
o tema, Moreira nomeia alguns estereótipos: Tião Macalé, o “feio”;
Mussum, o “bêbado”; Vera Verão, a “bicha preta”.
O primeiro exemplo, Tião Macalé, foi um
personagem do conhecido programa humorístico Os Trapalhões,
interpretado pelo ator negro Augusto Temístocles da Silva Costa.
Macalé era retratado sem a maioria dos dentes, pois a feiura do
personagem seria responsável pelo efeito cômico, segundo Moreira.
Mais recentemente, Adelaide, personagem
do programa Zorra Total interpretado pelo ator Rodrigo
Sant’Anna, seguia o mesmo modelo cômico de Macalé. O ator se
caracterizava de mulher, pintava a pele de preto e colocava uma
prótese que dava a impressão de que Adelaide não possuía alguns
dentes da frente. Caracterizado como “a negra pobre desdentada”,
o bordão cômico da personagem era “a cara da riqueza”.
Já Mussum, um dos personagens mais
populares da TV nas décadas de 1980 e 1990, interpretado pelo ator
Antônio Carlos Bernardes Gomes, era o estereótipo do bêbado. Um
dos elementos cômicos do programa Os Trapalhões era
direcionar piadas racistas ao personagem. Segundo Moreira, o efeito
cômico de Mussum era um exemplo do tipo de humor que visa provar uma
suposta superioridade do homem branco em relação ao homem negro,
uma vez que os personagens brancos eram representados de forma
sóbria. Por fim, Vera Verão, personagem interpretado pelo ator
Jorge Luís Sousa Lima, era o estereótipo do homossexual negro
promíscuo, que tentava seduzir homens de maneira direta, porém
sempre sendo rejeitado.
Já Sueli Carneiro, ao escrever sobre
Terra Nostra, novela dos anos 1999-2000 de muito sucesso,
responde aos elogios de que a novela estaria contribuindo para a
“autoestima da comunidade italiana”. No artigo “Terra Nostra
só para os italianos”, Sueli relembra alguns dos diálogos:
Assistimos ao menino Tiziu reclamar de
sua sorte ingrata com a seguinte frase:
“Deus não quis me embranquecer”.
Imagine o impacto dessas frases na autoestima da comunidade negra,
especialmente sobre as crianças negras.
Em outra passagem, Sueli relembra:
O barão do café pondera com seu
contratador sobre a impossibilidade de abrigar os italianos nas
senzalas desertas pela abolição. Diz ele: “São brancos. Trazem
no coração o espírito da liberdade. Não vão aceitar essa
história de senzala”.
Então, Sueli conclui:
Considerando que os personagens negros
não têm relevância na trama, a sua presença e a imagem negativa
que veiculam prestam-se unicamente a ratificar a suposta
superioridade do branco.
As frases destacadas por Sueli Carneiro
refletem a história da população negra no Brasil, que, após
séculos de escravização, viram imigrantes europeus receberem
incentivos do Estado brasileiro, inclusive com terras, enquanto a
negritude formalmente liberta pela Lei Áurea era deixada à margem.
Os incentivos para imigrantes fizeram parte de uma política oficial
de branqueamento da população do país, com base na crença do
racismo biológico de que negros representariam o atraso. Essa
perspectiva marcou a história brasileira, valorizando culturas
europeias em detrimento da cultura negra, segregando a população
negra de diversas formas, inclusive por leis e pela esterilização
forçada de mulheres negras, prática que o Estado brasileiro manteve
até um passado recente, como comprovado pela CPI da Esterilização
de 1992, proposta pela deputada federal Benedita da Silva e resultado
da pressão feita por feministas negras nos anos 1980.
Esses são alguns exemplos de
estereótipos que confinam atores negros e atrizes negras, resultando
em poucas opções de personagens que não sejam marcados por essas
violências simbólicas. Enquanto atores brancos e atrizes brancas
recebem amplas oportunidades de representação na indústria
audiovisual, negros e negras ainda lutam para que suas atuações não
firam a humanidade de pessoas negras. Do mesmo modo, ainda são
poucos os cineastas, roteiristas e produtores negros: as opções
ficam limitadas como resultado do racismo estrutural.
Nas redações de jornais não é
diferente. Segundo o Grupo de Estudos Multidisciplinar da Ação
Afirmativa (Gemaa), núcleo de pesquisas sediado na Uerj, nem 10% dos
colunistas dos grandes jornais são negros. No meu caso, quando
comecei a escrever na CartaCapital, comentando filmes, livros
ou textos de outras pessoas, mais de uma vez alguém ligou furioso na
redação, dizendo que eu não havia entendido o que quiseram dizer.
Eu achava curioso, pois era como se a crítica de uma pessoa negra ao
trabalho de uma pessoa branca rompesse com o pacto narcísico. O
racismo conhece o potencial transformador da potente voz de grupos
historicamente silenciados.
Quando assistir a um filme ou a uma
novela, procure refletir sobre a presença ou a ausência de atores e
atrizes negros. Quantas pessoas negras estão atuando? Que
personagens interpretam? O mesmo vale para qualquer produto cultural:
quando for a uma exposição de arte, a uma festa literária, a um
debate sobre poesia, quando ler um livro ou folhear uma revista. E,
para você que pode contratar profissionais da cultura ou investir em
projetos culturais, reflita quem você escolhe para a equipe e quais
temas estão sendo tratados. Você está fazendo o que pode para
contribuir para a luta antirracista?
Djamila Ribeiro, in Pequeno manual antirracista
Nenhum comentário:
Postar um comentário