— Perdão, cavalheiro. O senhor não
pode.
— Não posso por quê? Tá aqui a
entrada que eu comprei.
— O filme é proibido para setenta e
cinco anos, não viu na bilheteria?
— Vi. Eu tenho setenta e seis.
— Então me mostre a carteira de
identidade, por gentileza.
— A carteira de identidade está na
minha cara.
— Ah, é? Parece ter cinquenta e cinco,
sessenta no mais tardar. Infelizmente não pode.
— Este bom aspecto que o senhor achou
em mim — aliás, eu lhe agradeço, viu? — é porque eu me cuido:
ioga, meditação transcendental, cooper, macrobiótica.
— Tá bom, mas sem documento não
insista.
— Espere aí, me deixe argumentar.
O gerente aproxima-se:
— Que que há?
— É esse jovem aí que quer entrar e
não tem idade suficiente.
— Jovem? O senhor me chamou de jovem?
Agora está debochando de mim?
— Não senhor. Se o cara não tem
condição de ver o filme, eu chamo ele de jovem.
— Cara! O chefe de seção aposentado
de uma das mais importantes repartições federais, ser tratado de
cara!
— Meu amigo, calma. O rapaz está
cumprindo com o dever. São ordens superiores. Compreenda a nossa
posição. A frequência está baixando devido às últimas
disposições sobre idade-limite. Já pensamos mesmo em transformar
este estabelecimento em edifício-garagem.
— E eu com isso?
— Se o senhor entra, vem o fiscal e
fecha o cinema por infração.
— Melhor até. Facilita a mudança de
ramo.
— Não brinque com essas coisas.
Colabore conosco. Inclusive a fila está aumentando, e o senhor
bloqueou a entrada.
— Se a fila aumenta, como é que
diminui a frequência?
— Este filme é dos raros, entende? Que
ainda lotam a casa. Claro: proibido até setenta e cinco anos.
— Por isso mesmo é que eu quero ver.
— Mas se não atingiu a idade, se ainda
não conquistou esse direito, como é que eu posso permitir essa…
como direi, essa inconstitucionalidade? Seja razoável.
— Seja razoável também. Sou uma
pessoa respeitável, está para nascer quem tenha me visto mentir uma
vez na vida. Completei setenta e seis anos em 15 de fevereiro, sou um
homem de Aquário, e Aquário não é de embromar ninguém.
— Acredito, mas e a carteira?
— A carteira estava no carro, o carro
saiu com meu neto, sei lá onde ele anda a esta hora.
A fila começa a impacientar-se.
Pigarros. Tosses. Irritação sonora.
— Entra ou sai logo!
— Por que não deixam ele entrar? Será
que veio nova portaria, proibindo até oitenta?
— Aquele ali? Coitado, já passou da
idade de frequentar cinema. Por isso é que foi barrado.
— Só a gente criando uma associação
de frequentadores de cinema, para garantir nossos direitos.
— Garantir como? E quem garante a
associação?
— Esse velho está enchendo.
— O gerente também.
— Velho por quê? Quem é velho aqui?
Eu não me considero velho. Velhice é estado de espírito.
— Acaba com isso! Decide logo!
O gerente, nervoso:
— Viu o que o senhor me arranjou? Essa
turma de setenta e cinco, quando se chateia, é capaz de arrebentar o
cinema. E eu não tenho nada com o peixe, eu cumpro determinações
do alto, eu nem sequer posso entrar na sala de projeção, ainda não
fiz quarenta! Nem eu nem o porteiro… Os vaga-lumes, um tem setenta
e sete e o outro setenta e oito anos, por causa da proibição, o
senhor sabia? Pelo amor de Deus, suma da minha presença!
Carlos Drummond de Andrade, in De notícias e não notícias faz-se a crônica
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