segunda-feira, 16 de agosto de 2021

Predação planetária

No dia 14 de fevereiro de 1990, a sonda espacial Voyager I tirou uma fotografia do planeta Terra de uma distância recorde de 6 bilhões de quilômetros, cerca de quarenta vezes e meia a distância entre o Sol e a Terra. Essa é a distância aproximada até Plutão. Na foto, nosso planeta mal preenche um pixel, um “pálido ponto azul” contra a vasta imensidão do espaço.
A ideia da foto foi do astrônomo e divulgador de ciência Carl Sagan, que convenceu os técnicos da NASA a girar a sonda, reorientando-a para que tirasse uma última foto da Terra. Num pronunciamento público no dia 13 de outubro de 1994, proferido na Universidade de Cornell, onde lecionava, Sagan refletiu sobre o significado da imagem: “Ela deveria inspirar mais compaixão e bondade nas nossas relações, mais responsabilidade na preservação desse precioso pálido ponto azul, nossa casa, a única que temos.”
Quando medido contra as distâncias cósmicas, e considerando a enorme quantidade de mundos espalhados pelo vazio do espaço sideral, esse pequeno planeta é insignificante, apenas mais um entre trilhões de outros. Por outro lado, essa esfera girando em torno do Sol é tudo o que temos. Aqui vivemos, e é aqui que continuaremos a viver por muitas gerações. “Nessa vastidão, não temos qualquer indicação de que existe alguém para nos salvar de nós mesmos”, disse Sagan. “A responsabilidade do que ocorre aqui é inteiramente nossa.” A imagem de nossa casa cósmica ocupando um mero pixel flutuando em meio ao nada elucida sua fragilidade.
A Terra é um planeta finito, com recursos limitados. Indiferente e ignorante disso, nos últimos noventa anos a população mundial cresceu de 2 para 7 bilhões e meio de habitantes. (Os interessados podem consultar o relógio da população mundial, que calcula o valor aproximado da população em tempo real: worldometers.info/world-population.)
Em outubro de 2011, o Fundo Populacional das Nações Unidas projetou que a população chegará a 8 bilhões em 2025. A taxa de crescimento da população mundial vem desacelerando, mas os números são assustadores e continuarão a crescer, mesmo que mais lentamente do que no passado. No final do século XVIII, o inglês Thomas Malthus argumentou que a taxa de crescimento da população era incompatível com a capacidade de o nosso planeta prover a subsistência necessária a tanta gente: “O poder da população é tão superior ao poder da Terra de prover sustento ao homem que a morte prematura deverá, de alguma forma, visitar a espécie humana”, escreveu.
Em sua previsão um tanto sombria, Malthus não considerou a habilidade que temos, demonstrada inúmeras vezes no decorrer da história, para resolver nossos problemas de natureza tecnológica através da implementação de ideias científicas na prática, no caso, a otimização e mecanização das técnicas utilizadas na agricultura, responsáveis por um aumento pronunciado da produção alimentícia nos últimos 150 anos. Por outro lado, o fato é que a Terra tem apenas uma quantidade finita de terra arável, cerca de 31 milhões de quilômetros quadrados. (Mesmo que o planeta tenha em torno de 150 milhões de quilômetros quadrados de terra firme – aproximadamente 29% de sua superfície total –, temos que descontar regiões montanhosas de grande altitude, desertos, regiões pantanosas e outras áreas não irrigáveis ou utilizáveis para fins agrários.)
Em 2013, apenas 14 milhões de quilômetros quadrados eram considerados aráveis, cerca de 10% do total. Considerando a taxa de produção agrária atual, essa quantidade de terra arável pode produzir em torno de 2 bilhões de toneladas de grãos por ano. Isso é comida suficiente para alimentar cerca de 10 bilhões de vegetarianos, mas apenas cerca de 2 bilhões e meio de onívoros. A diferença de 75% vem da quantidade imensa de grãos necessários para sustentar o gado e as aves consumidos pela população mundial. Desses números, vemos que uma população vegetariana é bem mais sustentável globalmente do que uma população carnívora.
A estimativa acima faz duas suposições essenciais: primeiro, que o abastecimento de água continuará ocorrendo ao nível atual, isto é, que não haverá secas prolongadas, ataques terroristas que comprometam a qualidade da água em grandes reservatórios, ou conflitos sociopolíticos decorrentes do desvio de rios para irrigação. Segundo, que o aquecimento global, resultado de mudanças climáticas exacerbadas, não irá interferir na quantidade de terra arável ou na produção agrícola mundial. O aumento da temperatura do planeta é um fator essencial aqui, pois impacta não apenas a área da superfície terrestre que é arável, como, também, a possível perda de regiões costeiras e fluviais extremamente férteis decorrente da subida do nível do mar e das águas em geral.
Outra séria consequência do aquecimento global é o deslocamento em massa de populações costeiras para o interior, criando não só uma perda de mão de obra local como, também, enormes pressões socioeconômicas nas regiões longe da costa. Imagine como a população de São Paulo reagiria à invasão de 2 ou 3 milhões de cariocas. As estimativas acima são necessariamente aproximadas, e supõem a continuidade da estabilidade geopolítica mundial. Por exemplo, escrevi acima sobre a possibilidade concreta de conflitos termonucleares globais e locais, que teriam consequências absolutamente devastadoras, não só em termos de mortalidade humana e animal como, também, devido ao comprometimento do solo pela radiação.
Mesmo assim, os argumentos acima mostram que, a menos que cientistas consigam alterar radicalmente os níveis de produção agrícola (provavelmente através do desenvolvimento de soluções baseadas em alimentos geneticamente modificados, tópico que atrai ceticismo e mesmo uma rejeição a priori injustificada cientificamente), uma estimativa razoável para a população total que nosso planeta pode sustentar gira em torno dos 10 bilhões. De acordo com o Fundo Populacional das Nações Unidas, esse número será atingido em 2083.
Mesmo considerando as incertezas nas estimativas, me parece claro que estamos marchando resolutamente em direção a um ponto de saturação, em que nossas práticas de extração e de exploração do solo e a demanda de uma população crescente e com afluência maior irá exaurir os recursos planetários. A fé cega na ciência e na criação de soluções tecnológicas é uma posição perigosa, dado que é impossível basear o sucesso futuro no sucesso passado: a ciência e suas aplicações práticas não avançam linearmente ou de forma previsível, mesmo supondo que o fomento à pesquisa continuará inalterado tanto em nível governamental quanto privado.
Existem algumas medidas que podem ser tomadas para atenuar a pressão inexorável de uma população cada vez maior e com maiores demandas sobre o ecossistema global. Iniciativas educacionais devem ser instituídas de modo a educar um número cada vez maior de pessoas sobre os perigos de um crescimento populacional desmedido.
Entre elas, deve ser incluído o acesso fácil e pouco oneroso aos contraceptivos, sobrepujando barreiras culturais e religiosas; o consumo desmedido da carne, base da alimentação de bilhões de habitantes, precisa ser redirecionado a uma dieta orientada ao consumo maior de frutas e vegetais; fontes de energia renováveis precisam tornar-se economicamente viáveis de modo a atrair um número maior de usuários na população e nas empresas e órgãos governamentais; uma nova ética planetária baseada na sustentabilidade global deve ser incluída no currículo escolar e fazer parte da ética corporativa.
Toda criança precisa ser educada a respeito do planeta onde vive e toda empresa precisa agir de acordo com parâmetros que reflitam a realidade global em que vivemos. Cada um desses passos gera sérias controvérsias, e é debatido arduamente pelos diversos grupos de interesse, de órgãos governamentais a lideranças religiosas e comunitárias.
Com frequência, são rotulados como parte de uma agenda política liberal. Me parece que essa atitude tradicionalista é profundamente equivocada e, em grande parte, responsável pela situação atual. Educar a população sobre os perigos de um crescimento populacional desenfreado (que, como sabemos, afeta com frequência regiões já extremamente pobres), ou sobre o que comemos e de onde vem essa comida, ou sobre a necessidade urgente de protegermos o meio ambiente e, de modo mais geral, nosso planeta, para o benefício mútuo da população mundial e de todas as outras criaturas que dividem esse espaço conosco, deveria suplantar as divisões políticas que impedem uma mudança profunda na nossa atitude com relação ao planeta.
Deveríamos considerar essa nova atitude como uma extensão direta – do humano a qualquer forma de vida e ao planeta como um todo – da regra ética mais essencial que temos: trate todas as formas de vida como quer ser tratado; trate do planeta como quer que sua casa seja tratada. Por quê? Muito simples. Esse pálido ponto azul é a única casa que temos e que teremos por um longo tempo. A Terra existiu e continuaria a existir por bilhões de anos sem a gente. Por outro lado, nós não podemos existir sem ela.

Marcelo Gleiser, in O caldeirão azul

Nenhum comentário:

Postar um comentário