Estou escrevendo uma peça que suponho
venha a alcançar a maior glória e bilheteria. Será facílima de
montar. Dispensa cenários e até mesmo atores, pois o que há a
comunicar poderá ser transmitido em fita magnética, se houver fita
magnética. Se não houver, aproveitam-se os ruídos da rua, que
sendo variados, tornarão o espetáculo diferente a cada
apresentação. Em último caso, não havendo ruídos externos a
captar, ficará por conta da inventiva de cada espectador a criação
de sons, inteligíveis ou não (de preferência inin), que compõem
(ou não compõem, tanto faz) a estrutura original de minha peça.
Como? Ah, sim, é o Yan Michalski
perguntando o que é então que estou escrevendo, se não haverá
texto, mas simplesmente sons, ou nem isto. Respondi-lhe que escrever
o não escrito, escrever inescrevendo (sempre in) é básico em minha
concepção cênica. Todo o meu esforço intelectual se concentra em
compor uma peça que, não tendo qualquer palavra dicionarizada ou
bolada na hora pelo autor, esteja isenta de mácula perante a
suspicácia da Censura. Vencerá, pois, galhardamente, a etapa
preliminar de todo espetáculo. A preliminar e as outras. Tem-se
visto a Censura desaprovar o que aprovou, mandando retirar do cartaz
aquilo que antes autorizara a ser mostrado. Dá o dito por não dito.
Darei então o não dito por dito.
Ia começando a fazer o segundo ato,
quando alguém de bom juízo me adverte que o melhor é não usar nem
atores nem fita magnética nem rumores da rua. Nunca se sabe o que
pode sair da mistura de sons urbanos — buzinas, gritos, freadas,
objurgatórias (nome estilizado de palavrão), ronco de motor, vento
zunindo, quedas do vigésimo andar, vendedores de porta de loja,
gargalhadas, choro etc. Este material sonoro pode revestir-se de
feições estranhas, consideradas suspeitas por um censor que tenha
ouvido delicado, e lá se vai o dinheiro do produtor de minha peça,
lá se vai minha glória, além de outros aborrecimentos, fáceis de
prever.
O cauto amigo me previne ainda quanto ao
que ele considera o maior risco: deixar entregue à imaginação
imprevisível do espectador os sons da peça. Não há dúvida —
admite — de que se trata de experiência dramática das mais
sedutoras, pela instituição da autoria múltipla, ao sabor das
novas tendências da arte: o sujeito fruidor-criador do objeto. Cada
assistente repartirá comigo as vaidades da criação, e isto
estimulará infinitas realizações no gênero, que se poderia
rotular de teatro-em-ser, teatro-branco, teatro-não, teatro-sim, à
vontade. Mas adviriam duas consequências desagradáveis. Primeira, o
espectador reclamaria sua cota de direito autoral. Segunda (fatal
para a peça), o espetáculo ficaria em cena apenas meio minuto,
tempo suficiente para o censor detectar no espírito do cavalheiro da
terceira fila, poltrona oito, a inadmissível formulação de um som
altamente reprovável do ponto de vista do código da Censura.
Tendo na devida conta as ponderações do
meu amigo, permito-me considerá-las improcedentes. Como renunciar ao
puzzle de sons que será a essência de minha peça? Recorrer a
palavras seria contaminá-la. Usar o silêncio seria estabelecer o
teatro puro, para o qual não estamos preparados, ou talvez incorrer
na condenação total do censor.
Não vejo o menor inconveniente em que a
plateia compartilhe da renda, acho até que esta será a maneira de
levar público ao teatro. Quem não gostará de colaborar na invenção
e participar dos lucros? Por outro lado, a duração de meio minuto
para o espetáculo já é bom limite de tempo, se o compararmos à
não duração das peças natimortas pela proibição censória. Meio
minuto é meio triunfo. O próprio censor, quem sabe? será tentado a
praticar o exercício excitante da multiautoria com dividendo.
Prossigo pois no trabalho, com amor e
pertinácia, animado do propósito de achar uma saída para o teatro
nacional em face da Censura. Eis a fórmula: a peça que, por onde
quer que se lhe pegue, não se deixa pegar. Pela supressão da
linguagem e das conotações impróprias que toda palavra traz
consigo, senão intrinsecamente, pelo jeito com que é pronunciada,
pelo olhar que a sublinha, pelo gesto ou suspeita de gesto etc.
Sentido? Deixa pra lá.
Carlos Drummond de Andrade, in De notícias e não notícias faz-se a crônica
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