“O que é que amo quando te amo?”
Sim, estou amando. Mas não sei ao certo
quem. Tudo parece tão claro: amo aquela que me faz sorrir de
felicidade. Mas por que a amo? Eu a amo porque ela é um pedaço de
mim. Escreveu o poeta:
Ninguém a outro ama, senão que ama
O que de si há nele...
Ricardo Reis,
Ninguém a outro ama
Nascemos dilacerados. Santo Agostinho
começa suas Confissões dizendo: “Inquieto está o nosso
coração...”. Eu diria: “Nosso coração está cheio de
saudade...”. Saudade é a presença de uma ausência, um vazio que
dói.
Álvaro de Campos conhecia essa dor, e a
expressa em Acordar:
Minha dor é inútil
Como uma gaiola numa terra onde não
há aves, E minha dor é silenciosa e triste
Como a parte da praia onde o mar não
chega. [...]
Dá-me rosas, rosas, E lírios
também...
Mas por mais rosas e lírios que me
dês,
Eu nunca acharei que a vida é
bastante.
Faltar-me-á sempre qualquer coisa...
Nosso pecado original não é moral. É o
vazio dolorido que mora em nós. Vivemos a vida toda à procura de
algo que preencherá esse vazio e nos completará. Quando isso parece
acontecer, como na experiência do apaixonado, encontramos a
felicidade. Estamos completos. Mas o que é isso que encontramos –
ou imaginamos encontrar – na pessoa amada?
Breuer se apaixonou por uma adolescente
histérica que estava internada no seu sanatório. Nietzsche, por
artes de Lou Salomé, o procurou para tratar-se das enxaquecas
infernais que o mantinham por dias na cama em um quarto escuro.
Na primeira entrevista que tiveram,
Breuer percebeu que aquele homem tinha algo de extraordinário.
Freud, que nessa ocasião era assistente de Breuer, depois de ler
alguns dos livros de Nietzsche, informou ao mentor: “De todos os
que conheço, este é o homem que mais sabe sobre a alma humana”.
Breuer fez então uma proposta a
Nietzsche – ele poderia ficar internado na clínica gratuitamente
para o acompanhamento terapêutico de suas dores de cabeça, sob uma
condição: conversariam uma hora por dia.
Havia um espinho que atormentava Breuer:
o seu amor absurdo por aquela adolescente histérica. Como explicar
que o mais famoso médico de Viena se apaixonara por uma adolescente,
sua cliente? E Nietzsche, para elucidar o mistério daquele
sentimento, lhe fazia uma única pergunta: “Qual é o sentido?”.
A menina, conhecida na literatura como Anna O., era símbolo de quê?
O que é que ela representava? Não amamos a pessoa, mas o símbolo
que ela representa.
Talvez Anna O. simbolizasse a juventude –
Breuer já não a tinha, era um quarentão, estava com medo da
velhice e da morte. Quem sabe ele tivesse, inconscientemente, a
esperança mágica de voltar a ser jovem por meio da juventude de
Anna O.! Ou seria o certo ar de inocência que havia no sorriso dela?
Cassiano Ricardo escreveu um poema com o
título Você e o seu retrato. É uma série de perguntas que
ele faz à mulher amada. Lidas à primeira vista, as perguntas se
parecem mais com uma negação do amor. Um apaixonado, mergulhado na
sua paixão, jamais as faria. Porque o que caracteriza a paixão é a
certeza absoluta da eternidade do seu sentimento.
Por que tenho saudade
de você, no retrato,
ainda que o mais recente?
E por que um simples retrato,
mais que você, me comove,
se você mesma está presente?
Olho o seu retrato e sinto saudades de
você, porque nele você está ausente. Mas é inútil que eu deixe
de olhar para o retrato e olhe para você, porque o retrato, aquele
em que você está ausente, me comove mais que você mesma, presente.
Essas duas perguntas, que um amante
jamais faria – pelo enigma que contêm –, já me fizeram pensar
muitas coisas diferentes em tempos diferentes. Os poemas são sempre
assim – cada leitura é uma nova interrogação. Até que percebi
que esse poema não é nem sobre o amor nem sobre a amada. É sobre
“o retrato”. É uma meditação sobre o mistério do retrato de
uma mulher. Retratos têm mistérios?
Os retratos ficaram banais. Até trocaram
de nome: fotos. Todo mundo tira fotos com o celular. Elas são o
resultado de um artifício técnico que permite gravar numa folha de
papel uma cena da natureza ou um rosto. Nada mais. Mas serão só
isso mesmo?
Roland Barthes, solteirão que vivia com
a mãe, foi escarafunchar, depois que ela morreu, os álbuns de
retratos à procura de uma fotografia dela. Eram muitas. Todas de sua
mãe. Ele as examinava uma a uma e as punha de lado. Eram retratos de
sua mãe, sim, mas não tinham aquilo que ele procurava. Uma
fotografia contém um mistério que está além do visível.
Até que uma delas o fez parar. Seus
olhos se encheram de lágrimas. Lá estava o retrato que procurava. O
que é que ele continha de especial? Era um retrato que havia
capturado a essência de sua mãe, tal como ela vivia no coração
dele. Era um retrato de sua mãe menina...
O que existe de mágico numa fotografia é
que ela possibilita fixar um momento efêmero de beleza que aconteceu
num segundo de tempo e se foi. Os olhos nem o perceberam, tão rápido
que foi...
Era uma tarde quente quando Albert Camus
rabiscou esta curta observação no seu caderno de notas:
Céu de trovoada em agosto. Aragem
escaldante. Nuvens negras. No entanto, do lado do nascente, uma faixa
azul, delicada, transparente. Impossível fixá-la. Sua presença é
uma tortura para os olhos e para a alma. Porque a beleza é
insuportável. Ela desespera-nos, eternidade de um minuto que
desejaríamos prolongar pelo tempo fora.
O que ele gostaria de roubar do tempo era
a beleza: uma faixa azul, delicada, transparente... Gostaríamos que
ela fosse eterna. Mas a beleza escorrega no tempo que passa sem
parar.
A beleza acontece quando a eternidade
toca o tempo. E a câmera fotográfica tem o poder mágico de fixar
esse momento. Mas a captura do momento encantado é coisa rara.
Somente os fotógrafos com olhos de artista têm a capacidade de
vê-lo e sorte para fixá-lo. Assim, traduzindo o poema de Cassiano
Ricardo em outras palavras:
Minha amada: você, mulher que amo, está
viva, move-se no tempo que tudo destrói. Mas houve alguém, um
artista, um fotógrafo, capaz de capturar um momento mágico quando a
eternidade tocou o seu rosto. No retrato você está eternizada na
sua beleza. É assim que a desejo, para sempre... E o seu retrato,
esse que amo, não é igual a você, que vive no tempo. Ele é o seu
rosto no momento em que refletiu o raio de eternidade, o que a tornou
infinitamente bela.
Que fragmentos de eternidade se encontram
no seu retrato? Será esse ar indefinível de lembrança de um
passado que já foi e que me faz sentir saudade? Ou será um sorriso
de criança? Ou um sentimento de ausência? Talvez o fato de seus
olhos me seguirem sempre, por onde quer que eu vá. Seus olhos me
seguindo – isso é uma felicidade.
Olho e percebo que o seu retrato mais se
parece com você que você mesma. Porque ele capturou a sua essência.
Nele você está perfeita e bela, eternamente. Mas, para assim vê-lo,
é preciso que os olhos que o contemplam sejam apaixonados por você…
Rubem Alves, in Canto do pássaro encantado
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