sábado, 28 de agosto de 2021

O que é que amo quando te amo?

O que é que amo quando te amo?”
Sim, estou amando. Mas não sei ao certo quem. Tudo parece tão claro: amo aquela que me faz sorrir de felicidade. Mas por que a amo? Eu a amo porque ela é um pedaço de mim. Escreveu o poeta:

Ninguém a outro ama, senão que ama
O que de si há nele...

Ricardo Reis,
Ninguém a outro ama

Nascemos dilacerados. Santo Agostinho começa suas Confissões dizendo: “Inquieto está o nosso coração...”. Eu diria: “Nosso coração está cheio de saudade...”. Saudade é a presença de uma ausência, um vazio que dói.
Álvaro de Campos conhecia essa dor, e a expressa em Acordar:

Minha dor é inútil
Como uma gaiola numa terra onde não há aves, E minha dor é silenciosa e triste
Como a parte da praia onde o mar não chega. [...]
Dá-me rosas, rosas, E lírios também...
Mas por mais rosas e lírios que me dês,
Eu nunca acharei que a vida é bastante.
Faltar-me-á sempre qualquer coisa...

Nosso pecado original não é moral. É o vazio dolorido que mora em nós. Vivemos a vida toda à procura de algo que preencherá esse vazio e nos completará. Quando isso parece acontecer, como na experiência do apaixonado, encontramos a felicidade. Estamos completos. Mas o que é isso que encontramos – ou imaginamos encontrar – na pessoa amada?
Breuer se apaixonou por uma adolescente histérica que estava internada no seu sanatório. Nietzsche, por artes de Lou Salomé, o procurou para tratar-se das enxaquecas infernais que o mantinham por dias na cama em um quarto escuro.
Na primeira entrevista que tiveram, Breuer percebeu que aquele homem tinha algo de extraordinário. Freud, que nessa ocasião era assistente de Breuer, depois de ler alguns dos livros de Nietzsche, informou ao mentor: “De todos os que conheço, este é o homem que mais sabe sobre a alma humana”.
Breuer fez então uma proposta a Nietzsche – ele poderia ficar internado na clínica gratuitamente para o acompanhamento terapêutico de suas dores de cabeça, sob uma condição: conversariam uma hora por dia.
Havia um espinho que atormentava Breuer: o seu amor absurdo por aquela adolescente histérica. Como explicar que o mais famoso médico de Viena se apaixonara por uma adolescente, sua cliente? E Nietzsche, para elucidar o mistério daquele sentimento, lhe fazia uma única pergunta: “Qual é o sentido?”. A menina, conhecida na literatura como Anna O., era símbolo de quê? O que é que ela representava? Não amamos a pessoa, mas o símbolo que ela representa.
Talvez Anna O. simbolizasse a juventude – Breuer já não a tinha, era um quarentão, estava com medo da velhice e da morte. Quem sabe ele tivesse, inconscientemente, a esperança mágica de voltar a ser jovem por meio da juventude de Anna O.! Ou seria o certo ar de inocência que havia no sorriso dela?
Cassiano Ricardo escreveu um poema com o título Você e o seu retrato. É uma série de perguntas que ele faz à mulher amada. Lidas à primeira vista, as perguntas se parecem mais com uma negação do amor. Um apaixonado, mergulhado na sua paixão, jamais as faria. Porque o que caracteriza a paixão é a certeza absoluta da eternidade do seu sentimento.

Por que tenho saudade
de você, no retrato,
ainda que o mais recente?

E por que um simples retrato,
mais que você, me comove,
se você mesma está presente?

Olho o seu retrato e sinto saudades de você, porque nele você está ausente. Mas é inútil que eu deixe de olhar para o retrato e olhe para você, porque o retrato, aquele em que você está ausente, me comove mais que você mesma, presente.
Essas duas perguntas, que um amante jamais faria – pelo enigma que contêm –, já me fizeram pensar muitas coisas diferentes em tempos diferentes. Os poemas são sempre assim – cada leitura é uma nova interrogação. Até que percebi que esse poema não é nem sobre o amor nem sobre a amada. É sobre “o retrato”. É uma meditação sobre o mistério do retrato de uma mulher. Retratos têm mistérios?
Os retratos ficaram banais. Até trocaram de nome: fotos. Todo mundo tira fotos com o celular. Elas são o resultado de um artifício técnico que permite gravar numa folha de papel uma cena da natureza ou um rosto. Nada mais. Mas serão só isso mesmo?
Roland Barthes, solteirão que vivia com a mãe, foi escarafunchar, depois que ela morreu, os álbuns de retratos à procura de uma fotografia dela. Eram muitas. Todas de sua mãe. Ele as examinava uma a uma e as punha de lado. Eram retratos de sua mãe, sim, mas não tinham aquilo que ele procurava. Uma fotografia contém um mistério que está além do visível.
Até que uma delas o fez parar. Seus olhos se encheram de lágrimas. Lá estava o retrato que procurava. O que é que ele continha de especial? Era um retrato que havia capturado a essência de sua mãe, tal como ela vivia no coração dele. Era um retrato de sua mãe menina...
O que existe de mágico numa fotografia é que ela possibilita fixar um momento efêmero de beleza que aconteceu num segundo de tempo e se foi. Os olhos nem o perceberam, tão rápido que foi...
Era uma tarde quente quando Albert Camus rabiscou esta curta observação no seu caderno de notas:

Céu de trovoada em agosto. Aragem escaldante. Nuvens negras. No entanto, do lado do nascente, uma faixa azul, delicada, transparente. Impossível fixá-la. Sua presença é uma tortura para os olhos e para a alma. Porque a beleza é insuportável. Ela desespera-nos, eternidade de um minuto que desejaríamos prolongar pelo tempo fora.

O que ele gostaria de roubar do tempo era a beleza: uma faixa azul, delicada, transparente... Gostaríamos que ela fosse eterna. Mas a beleza escorrega no tempo que passa sem parar.
A beleza acontece quando a eternidade toca o tempo. E a câmera fotográfica tem o poder mágico de fixar esse momento. Mas a captura do momento encantado é coisa rara. Somente os fotógrafos com olhos de artista têm a capacidade de vê-lo e sorte para fixá-lo. Assim, traduzindo o poema de Cassiano Ricardo em outras palavras:

Minha amada: você, mulher que amo, está viva, move-se no tempo que tudo destrói. Mas houve alguém, um artista, um fotógrafo, capaz de capturar um momento mágico quando a eternidade tocou o seu rosto. No retrato você está eternizada na sua beleza. É assim que a desejo, para sempre... E o seu retrato, esse que amo, não é igual a você, que vive no tempo. Ele é o seu rosto no momento em que refletiu o raio de eternidade, o que a tornou infinitamente bela.
Que fragmentos de eternidade se encontram no seu retrato? Será esse ar indefinível de lembrança de um passado que já foi e que me faz sentir saudade? Ou será um sorriso de criança? Ou um sentimento de ausência? Talvez o fato de seus olhos me seguirem sempre, por onde quer que eu vá. Seus olhos me seguindo – isso é uma felicidade.
Olho e percebo que o seu retrato mais se parece com você que você mesma. Porque ele capturou a sua essência. Nele você está perfeita e bela, eternamente. Mas, para assim vê-lo, é preciso que os olhos que o contemplam sejam apaixonados por você…

Rubem Alves, in Canto do pássaro encantado

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