Dizem que ele é louco. É possível. Da
última à primeira cocheira da Expointer, dizem que ele é louco. Os
patrões e também os peões dizem que ele é louco. Até as vacas
premiadas e também as chibungas dizem que ele é louco. Será?
Talvez seja ele quem ria. Talvez seja uma grande ironia. Ou talvez
ainda ele seja um Dom Quixote de bombacha e cavalo de pau em busca de
coxilhas de vento de um tempo que, como ele, seja também uma
quimera. Talvez.
Desde a primeira vez em que amanheceu nos
portões da Expointer, em 1991, dizem que ele é louco. Amanheceu
estropiado e faminto. Tinha 15 anos. Vinha de Uruguaiana. Um pouco a
pé, um pouco espremido no meio dos bichos de alguma cacunda de
caminhão. Levou três dias para chegar. Chegou.
Amanheceu nos portões da Expointer com
um cabo de vassoura. Apresentou-o como seu cavalo. Pediu atestado
sanitário para que o animal botasse os cascos na feira. Demonstrou
todos os movimentos do Freio de Ouro, o grande prêmio da raça
crioula, evolucionando com seu cavalo de pau. E assim inaugurou sua
participação na grande festa do Rio Grande.
Seu nome, Vanderlei Ferreira. Filho de
pobre, jamais foi à escola. Mas frequenta a Faculdade de Zootecnia.
Todo ano lhe raspam a cabeça como se fosse bixo. Assiste as aulas,
às vezes faz até prova. Se fosse levar a vida a sério, descobriria
que é analfabeto. Como decidiu que a distância entre a realidade e
a liberdade é um cabo de vassoura, vai se formar doutor.
Vive em Uruguaiana como folclore. Dorme
escondido num posto de gasolina, às vezes na casa de um tio. Já
teve uma Kombi por morada. Mas, seja qual for o pouso, decidiu que
estará sempre em sua vasta estância de fronteira, espiando o
rebanho pela janela. Tudo isso consegue enxergar, sentir, tocar,
enrolado em um cobertor velho no canto de lugar nenhum. E quando
acorda, pega um celular de brinquedo, se planta na porta do Banco do
Brasil e ordena ao capataz: “Pode embarcar os bois”.
Desde que descobriu a Expointer, nunca
falhou uma. Chega com fedor de bicho, os piolhos pastando pela
cabeça. Os veterinários lhe dão um banho, desinfetam o couro e
acaba até presenteado com um par de botas. Chapéu, bombacha e
churrasco vai ganhando de outros padrinhos espraiados pela exposição.
Veste um jaleco branco de veterinário e sai com uma planilha debaixo
do braço. Dorme numa cocheira do galpão do isolamento, entre éguas
e touros doentes. Gasta o dia cavalgando pelas ruas e avenidas da
feira. Ou deixa o cavalo relinchando na porta de algum expositor e
vai declamar nos ouvidos de uma prenda: “Os patos perdem as penas,
os peixes perdem as escamas, e eu perco tempo amando quem não me
ama...”.
Quando corcoveia sobre o lombo de pau do
seu cavalo, o povo ri, se diverte. O dito louco também ri muito, por
dentro e por fora. Não se sabe quem ri mais, se a plateia, se o
suposto doido. Nem se sabe de quem será a derradeira gargalhada.
Dizem que ele é louco. O etimólogo Joan
Corominas definiu o gaúcho como de origem incerta, guacho órfão,
pobre, indigente... Vagabundo, segundo o estudioso José de Saldanha.
Homem que não sabe andar a pé, conforme Dom Félix de Azara,
fundador de São Gabriel. Vaqueano dos caminhos de aventura, tropeiro
de sonhos e perigos, dono de si. Andarengo de horizontes largos,
companheiro da liberdade, na prosa de Simões Lopes Neto.
Se tudo isso é o gaúcho, não há
ninguém naquela Expointer mais autêntico do que o chamado louco de
Uruguaiana. É possível que ele tenha levado o mito mais a sério do
que qualquer outro homem do Rio Grande. É possível que tenha se
desgarrado no que Borges chamou de vertigem horizontal da planície.
É possível que tenha restado a gaúchos como ele apenas um cavalo
de pau. É possível que tudo que tenha sobrado da utopia seja um
cabo de vassoura.
É possível até que seja tão louco que
tenha inventado um gaúcho.
VANDERLEI, VOCÊ É LOUCO?
– Por que você veio à Expointer?
– Ouvi na faculdade, em Uruguaiana,
que os alunos estavam liberados para ir à Expointer. Era 1991. Me
atraquei a pé.
– Foi difícil?
– Foi a pior coisa da minha vida.
Ninguém queria me trazer. Passei fome. Levei três dias para chegar.
Mas amanheci aqui.
– E o que achou?
– Foi o melhor dia da minha vida. Me
apavorei com o mundão de coisa. Nunca mais queria que acabasse.
– E o seu cavalo?
– Meu cavalo é uma vassoura. Queria
que fosse o BT Faceiro do Junco (vencedor do Freio de Ouro de 1995),
mas é um cabo de vassoura.
– Se você sabe que é um cabo de
vassoura, o que pensa quando está montado nele?
– Sonho que eu tô num cavalo de
verdade. Levando uma prenda na garupa. Laçando, paleteando...
– Como é o seu cavalo?
– É um tordilho. Branco.
– E o que você faz com o cavalo?
– Desfilo, faço as provas. Uma vez,
em Uruguaiana, me deram nota em tudo. Fiz tudo que se faz no Freio de
Ouro. Também já desfilei na avenida. Me aplaudiram de pé.
– Como é a prenda?
– Eu queria uma que não fosse
exigente. Que quando eu quisesse sair, me liberasse.
– Às vezes você dorme nos carros, no
posto de gasolina. O que você fica pensando?
– Penso que estou numa estância com
a minha prenda.
– Você nunca trabalhou como peão?
– Comecei a trabalhar, mas queriam
que eu levantasse às 4h pra fazer coisa que podia fazer às 6h. Não
deu certo.
– Não é boa a vida de peão?
– É muito difícil. O cara sofre,
se machuca e ainda por cima ganha pouco. Não quero ser peão. Quero
ser veterinário.
– Você vai à faculdade?
– Assisto às aulas, aprendo de tudo
um pouco. Mas não sei ler nem escrever. Só números.
– Quando você chegou à Expointer
dessa última vez?
– Cheguei na sexta passada. Vim de
caminhão, com touros de raça. Sobrava um lugarzinho.
– E quando a Expointer acaba?
– Me dá uma tristeza no coração.
– Como é essa tristeza?
– É uma tristeza funda.
– Como você vai embora?
– Vou triste, deitado, pensativo.
Volto com os bichos.
– Você só anda a cavalo na Expointer?
– Nunca andei a pé.
– Você já montou num cavalo de
verdade?
– Uma vez.
– E o que achou?
– É bem melhor do que um cabo de
vassoura.
– Você sabe que isso é uma fantasia,
que o cavalo é um cabo de vassoura. E mesmo assim galopa por aí num
cavalo de pau. Por quê?
– Sem invenção a vida fica sem
graça. Fica tudo muito difícil.
– Tem gente que acha que você é
louco...
– A verdade é que quem acha que eu
sou louco não raciocina.
Eliane Brum, in A vida que ninguém vê
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