sexta-feira, 6 de agosto de 2021

Motivos para se importar

Um sujeito mais cético talvez esteja se perguntando por que diabos ele deveria se interessar pelos genes, monumentos e obras de arte totalmente obscuros produzidos por povos que deixaram de existir séculos atrás, aos quais não conseguimos nem atribuir um nome com algum grau de certeza, na maior parte dos casos. Como você já se deu ao trabalho de abrir este livro, presumo que não seja um desses caras, mas aqui vão, de todo modo, alguns argumentos para esfregar no nariz daquele tio chato que gosta de alardear seu espírito prático.
Para começo de conversa, a não ser que ele pertença a alguma família de origem europeia ou asiática cujos membros fundadores puseram os pés neste continente há poucas décadas e jamais se dignaram a gerar prole com alguém que já estava aqui antes, as chances de que o tio cético carregue DNA desses povos “perdidos” é elevada — em especial do lado materno da família, mesmo que ele assinale a opção “branco” nos questionários do IBGE sobre cor da pele/afiliação racial.
Essa, aliás, é uma das conclusões mais sólidas das análises genômicas que se popularizaram desde o começo deste século. Para entender melhor isso, anote aí a sigla, porque vamos usá-la como pau para toda obra ao longo destas páginas: mtDNA, ou DNA mitocondrial, a minúscula fitinha de material genético que se aninha no interior das mitocôndrias, estruturas em forma de nhoque (bem, ao menos do meu ponto de vista de ávido devorador de nhoque) que são as usinas de energia das células de organismos complexos como nós.
Em seres humanos, o mtDNA se limita a apenas 16,5 mil pares de “letras” químicas, as unidades do material genético conhecidas como A (adenina), T (timina), C (citosina) e G (guanina). É muito pouco — mais ou menos a mesma quantidade de letras e espaços presente numa única reportagem de tamanho médio de uma revista mensal (eu sei porque vivo escrevendo esse tipo de coisa, como você deve ter imaginado), enquanto a “edição principal” do genoma humano tem três bilhões de letras químicas. Apesar do tamanho modesto, porém, o mtDNA tem uma propriedade incrivelmente útil para quem estuda a história populacional da nossa espécie: ele só costuma ser transmitido pelo lado materno. Não participa do “embaralhamento” de material genético que acontece toda vez que óvulos e espermatozoides são formados. Você, moça, e você também, meu bom rapaz: ambos só carregam mtDNA da mamãe, e não do papai — e assim foi desde a aurora dos tempos.
E daí? Daí que, não importa quantas vezes, por quantas gerações, as descendentes da união entre uma índia e um português no longínquo século XVI tenham se casado com italianos, japoneses ou lituanos, elas sempre carregarão mtDNA indígena — desde que haja uma transmissão ininterrupta de mãe para filha, para neta e assim por diante. Digo “mtDNA indígena” porque há uma tendência clara de diferenciação geográfica e, em menor grau, étnica, entre os chamados haplogrupos — grosso modo, nada mais que um jeito chique de dizer “subgrupos” — de mtDNA. Os haplogrupos ameríndios, ou seja, de nativos das Américas, são bem característicos deste continente, embora possuam uma ligação clara com os de certas áreas da Sibéria, o que é um dos muitos argumentos fortes em favor da origem (em última instância) asiática dos indígenas modernos.
Embora, de maneira geral, a contribuição dos ameríndios para o DNA “principal” dos brasileiros seja pequena (inferior a 10%, em média) perto da europeia (predominante) e africana (logo atrás), muitos dos que se consideram brancos por aqui têm mtDNA indígena — sinal de uma matriarca esquecida no passado remoto de inúmeras famílias brasileiras da gema, cujo único vestígio concreto é a sopa química de letrinhas nas células de seus descendentes. Para ser mais exato, entre 20% e 30% dos brasileiros vivos hoje descendem de uma tataravó índia, como mostra o mtDNA. Enxergar com mais clareza a ascensão e queda de povos e culturas do Brasil pré-histórico abre, portanto, uma janela com vista para o passado familiar remoto de quase todos nós. De quebra, ainda deixa claro que essa vista muitas vezes não é tão linda quanto o Pão de Açúcar: o mero fato de a parte indígena da nossa equação populacional ser muito mais visível pelo lado materno é, por si só, significativo.
Antropólogos e geneticistas contam com um equivalente igualmente útil do mtDNA para estudar as linhagens paternas. Trata-se do cromossomo Y, a marca genômica da masculinidade — como todos deveríamos aprender no ensino médio, homens herdam um cromossomo X da mãe e um Y do pai, enquanto mulheres se caracterizam pela dobradinha de cromossomos X. Sabe quantos brasileiros, de qualquer cor de pele, carregam hoje um cromossomo Y indígena? Quase nenhum — com exceção dos que ainda se identificam como membros de uma tribo ameríndia, obviamente. Esse tipo de assimetria é típico de populações conquistadas em todos os tempos e em qualquer lugar do mundo, infelizmente. Os israelitas da Bíblia, os macedônios de Alexandre, o Grande, os mongóis de Genghis Khan e, óbvio, os portugueses de Martim Afonso de Souza sempre seguiram basicamente o mesmo figurino: numa operação de conquista, os homens dos grupos vencidos são mortos ou escravizados, e as mulheres viram concubinas. Nenhum outro modelo é capaz de explicar o tamanho da diferença entre o que enxergamos nas duas rotas paralelas, a do mtDNA e a do cromossomo Y.
Esse talvez seja o jeito mais pessoal de encarar a questão do “para que serve” entender a pré-história desta Terra de Vera Cruz. Há pelo menos outro ângulo, porém, para o qual eu gostaria de chamar a atenção do respeitável público. Estou me sentindo um ancião contemporâneo de Matusalém ao escrever isto, mas vamos lá: o fato é que vivemos numa época ridiculamente cínica, e uma das características desse cinismo hodierno é a mania de zombar da ideia de que a história é a mestra da vida — ou, como se dizia antigamente, a ideia de que quem não conhece a própria história está fadado a repeti-la. É claro que essa visão tem seus problemas (o mais óbvio é a tendência a transformar todos os personagens do passado em exemplos a serem seguidos ou vilões a serem odiados), mas a saga do Brasil pré-histórico, especialmente na versão repaginada que estamos descobrindo nos últimos tempos, tem implicações inegavelmente importantes para o que estamos fazendo com este colosso continental que nos coube, a nossa parte do latifúndio planetário.
Recorde que, como contei não muitos parágrafos atrás, os indícios de uma densa ocupação humana na Amazônia e em outros lugares do país antes da chegada dos portugueses são cada vez mais claros. Nossos amigos Kuikuro, junto com seus colegas antropólogos, resumiram isso de forma muito evocativa no título de seu artigo para a Science, ao sugerir que, antes de 1500, a maior floresta tropical do mundo, longe de ser virginalmente intocada, estava mais para cultural parkland — uma expressão inglesa chatinha de traduzir, mas que talvez corresponda a algo como “um parque gestado pela cultura humana”. O curioso, ao menos do nosso ponto de vista atual, é que, após o choque inicial do contato entre os primeiros brasileiros e a megafauna da Era do Gelo, a qual acabou desaparecendo, o aumento da população e da complexidade social dos ameríndios, que foi moldando vastas áreas de floresta tropical e de outros espaços à imagem e semelhança dos povos nativos, não parece ter sido suficiente para empobrecer de forma significativa e/ou duradoura os ambientes do futuro Brasil.
Não é minha intenção aqui reeditar o mito do bom selvagem, cuja sobrevivência é um desserviço tanto para descendentes de europeus, estimulando-os a enxergar os indígenas com condescendência e paternalismo, quanto para os povos nativos, retratando-os como algo diferente do que no fundo são: humanos, como todos nós. O mundo está cheio de exemplos de degradação ambiental praticada por grupos indígenas sem nenhuma “ajuda” de invasores ocidentais (que o digam os moas, aves gigantescas impiedosamente transformadas em churrasco até a extinção pelos maoris da Nova Zelândia). Ninguém vive, nem jamais viveu ou viverá, “em perfeito equilíbrio com a natureza”. Mesmo assim, o paradoxo permanece. De alguma maneira, os xinguanos e os habitantes primevos de Marajó, de Altamira e de outros lugares encontraram maneiras de transformar o ambiente que ocuparam — e que exploraram de forma relativamente intensa e planejada, aliás — sem bagunçar tudo, diferentemente do que o Estado e a iniciativa privada da República Federativa do Brasil têm feito desde o último século. Acho difícil que não tenhamos nada a aprender com eles. No mínimo, sou capaz de apostar que o pessoal da Embrapa (a gloriosa Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, uma das grandes responsáveis pelo nosso status como potência agropecuária tropical) faria de tudo para pegar carona numa máquina do tempo e aprender, tintim por tintim, a “receita” da terra preta amazônica com os agrônomos indígenas do ano 1000 d.C. Aliás, excetuando-se o pequeno detalhe da máquina do tempo, é exatamente isso que pesquisadores da Embrapa e de outros lugares têm feito nas últimas décadas: experimentar diferentes formas de recriar as propriedades interessantíssimas da terra preta.
Quem ainda acha que esse tipo de preocupação não passa de obsessão de “ecochato” ou maluquice de abraçador de árvore deveria abrir os olhos e os ouvidos, nem que seja para prestar atenção a algumas das mazelas que preencheram o noticiário nacional dos últimos anos — da seca em São Paulo ou em Manaus ao mar de lama em Mariana. A saúde do seu bolso e mesmo a saúde física das pessoas ao seu redor vão depender, em grande medida, de soluções menos burras para os desafios que as primeiras civilizações brasileiras já enfrentavam. Pensando de forma ainda mais ampla, o estudo do passado remoto, sobretudo quando enfrentamos escalas de espaço e, tempo tão vastas quanto as que serão nosso mote nas próximas páginas, força-nos a encarar uma questão difícil de responder, porém essencial: quais são as forças por trás da trajetória de uma civilização? Será que existe um caminho único rumo ao “desenvolvimento”, rumo ao máximo bem-estar humano possível, ou seja lá qual padrão você decida adotar como indicativo de uma “boa sociedade”? Desse ponto de vista, dá para a gente tentar se perguntar por que as sociedades nativas do Brasil não construíram, digamos, pirâmides de pedra como as que existem no México e na América Central — a resposta terá de ser bastante especulativa, mas é possível dar ao menos um chute bem-informado. Por outro lado, é também relevante tentar entender como esses nativos conseguiram realizar outras coisas igualmente importantes com as matérias-primas que tinham à mão, e o que isso significa para nós, que herdamos a terra que eles pisavam.
Imagino que você já esteja saciado de preliminares. É hora de tentar descobrir quem, afinal, era essa moça chamada Luzia.

Reinaldo José Lopes, in 1499: O Brasil antes de Cabral

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