As mulheres negras são
ultrassexualizadas desde o período colonial. No imaginário coletivo
brasileiro, propaga-se a imagem de que são “lascivas”, “fáceis”
e “naturalmente sensuais”. Essa ideia serve, inclusive, para
justificar abusos: mulheres negras são as maiores vítimas de
violência sexual no país.
Obviamente a questão não é sobre a
sensualidade de determinada mulher, mas sim sobre necessidade de
enquadrar mulheres negras nesse estereótipo. É importante refutar a
visão colonial, que via os corpos negros como violáveis. Respeito
muito o importante trabalho de passistas de escola de samba, por
exemplo, que lutam para perpetuar o verdadeiro legado do samba. O nu
só deveria ser problematizado quando utilizado dentro da lógica
colonial.
Quando Gilberto Freyre, em Casa-grande &
senzala, faz afirmações como: “O que a negra da senzala fez foi
facilitar a depravação com a sua docilidade de escrava; abrindo as
pernas ao primeiro desejo do sinhô-moço”, ele contribui para a
fetichização. As mulheres negras escravizadas eram tratadas como
mercadoria, propriedade, portanto não tinham escolha. Nesse
contexto, não há como negar que elas eram estupradas pelos senhores
de engenho.
Ao afirmar que “nós carregamos a
marca”, Luiza Bairros exemplifica bem a ultrassexualização dos
corpos negros femininos, que faz com que a imagem das mulheres negras
seja vista sob o prisma da exotização. Luiza denunciou de forma
obstinada a violência mascarada pelo mito da democracia racial. Ou
pior que mascarada: a “marca”, em vez de ser problematizada, é
vista como um elogio da beleza negra.
Essa sexualização retira a humanidade
das mulheres, pois deixamos de ser vistas com toda a complexidade do
ser humano. Somos muitas vezes importunadas, tocadas, invadidas sem a
nossa permissão. Muitas vezes temos nossos nomes ignorados, sendo
chamadas de “nega”. São atitudes que parecem inofensivas, mas
que para mulheres negras são recorrentes e violentas.
O racismo somado ao machismo já me fez
passar por situações absurdas. Enquanto eu cursava filosofia, um
colega, metido a engraçado, perguntou: “Por que você, uma negra
bonita, está queimando seus neurônios estudando filosofia?”.
Outro me questionou por que eu não “arrumava um gringo rico pra
casar”. Na cabeça deles, por eu ser uma “negra bonita”, meu
lugar não era na universidade.
A poeta e escritora Elisa Lucinda tem uma
frase forte, mas muito pertinente: “Deixar de ser racista não é
comer uma mulata”. A autora chama atenção para o fato de que se
relacionar com uma pessoa negra não significa ter uma consciência
antirracista. Primeiro, porque é necessário entender como essa
relação se dá. Se ela segue signos racistas, como a ideia de que
mulheres negras são “quentes” e “naturalmente sensuais”, ou
ainda se a pessoa só procura pessoas negras para relações casuais,
e não para um compromisso duradouro, a relação é pautada pelo
racismo.
Recentemente, o tema da solidão da
mulher negra se tornou objeto de pesquisas acadêmicas. Em sua
dissertação de mestrado, posteriormente publicada em livro com o
título Virou regra?, Claudete Alves discute como o racismo é um
fenômeno que abarca a dimensão afetiva e sexual da mulher negra,
que fica à margem das escolhas afetivas de homens brancos e negros.
Ana Cláudia Lemos Pacheco aborda o mesmo assunto em sua tese de
doutorado, “Branca para casar, mulata para f..., negra para
trabalhar”: Escolhas afetivas e significados de solidão entre
mulheres negras em Salvador. Numa sociedade racista, machista e
heteronormativa, as mulheres negras ficaram relegadas ao papel de
servir: seja na cozinha, seja na cama.
Dados do Censo 2010 mostram que as
mulheres negras são as que menos se casam e, entre as com mais de
cinquenta anos, elas são maioria na categoria “celibato
definitivo”, ou seja, que nunca viveram com um cônjuge.2
Obviamente não pretendo sugerir com quem as pessoas devem se
relacionar. A questão é revelar os processos históricos que fazem
com que as mulheres negras, sobretudo as retintas, sejam
sistematicamente preteridas, como se não fossem dignas de serem
amadas. É preciso questionar padrões estéticos que desumanizam as
mulheres negras.
Em seu ensaio “Vivendo de amor”, bell
hooks ressalta a importância do amor na vida das mulheres negras,
sobretudo o amor-próprio. “Quando nos amamos, sabemos que é
preciso ir além da sobrevivência”, ela afirma. Esse é um
entendimento fundamental para que mulheres negras possam perceber que
merecem amor em suas vidas.
Em outra esfera, há a relação de afeto
por conveniência, que ocorre, por exemplo, com a trabalhadora
doméstica. Apesar do avanço da legislação nos anos 2000, muitas
vezes essa profissional não tem seus direitos assegurados nem
condições dignas de trabalho, já que, segundo seus patrões, ela
“é quase da família”. É mais fácil amar pessoas negras quando
elas estão “no seu devido lugar”. Minha mãe foi empregada
doméstica por alguns anos, antes de conhecer meu pai. Quando
anunciou que se casaria e que, a partir daquele momento, não
trabalharia mais, sua antiga patroa tentou fazê-la desistir do
relacionamento, inclusive inventando histórias sobre o futuro
marido. Portanto, minha mãe só podia ser amada enquanto
permanecesse no lugar que julgavam ser o dela.
Em relacionamentos inter-raciais, muitas
vezes as pessoas de fora dizem esperar que o filho do casal carregue
traços mais parecidos com o genitor de pele branca. No entanto,
atribuir uma qualidade negativa ao fenótipo negro, falando coisas
como “cabelo ruim”, diz muito sobre os padrões de beleza
racistas impostos em nossa sociedade. Como a norma é branca, tudo
que difere é visto como o que não é bom.
Dessa forma, é fundamental que pessoas
brancas compreendam os mecanismos pelos quais o racismo opera, pois
podem reproduzi-los acreditando estarem imunes por terem um marido,
uma esposa ou um filho negros. Estar atento ao que a pessoa negra da
família relata é um passo importante. Fala-se muito em empatia, em
colocar-se no lugar do outro, mas empatia é uma construção
intelectual, ética e política. Ao amar alguém de um grupo
minorizado, deve-se entender a condição do outro, para que se
possa, de fato, assumir ações para o combate de opressões das
quais a pessoa amada é vítima. É uma postura ética: questionar as
próprias ações em vez de utilizar a pessoa amada como escudo. A
escuta, portanto, é fundamental.
Djamila Ribeiro, in Pequeno manual antirracista
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