Quem teria criado esse labirinto de
incertezas, esse templo de presunção, essa jarra de pecados, esse
campo semeado de mil ardis, essa porta do inferno, essa cesta
transbordante de astúcias, esse veneno que parece mel, essa corrente
que prende os mortais a terra: a mulher?
Eu copiava lentamente, silenciosamente,
esse cântico budista, sentado no chão, perto do braseiro aceso.
Estava encarniçado, amontoando exorcismo sobre exorcismo, a expulsar
de meu espírito um corpo encharcado de água, balançando os
quadris, que durante todas essas noites de inverno passava e
repassava diante de mim no ar úmido. Não sei como, logo depois do
desmoronamento da galeria, onde quase minha vida foi diminuída, a
viúva havia surgido em meu sangue; ela tocava-me como um animal
feroz, imperiosa, cheia de acusações.
— Venha, venha! — gritava ela. — a
vida não é senão um relâmpago. Venha depressa, venha, venha,
antes que seja muito tarde!
Eu sabia bem que era Mara, o espírito do
cão, sob a aparência de um corpo de mulher de quadris possantes. Eu
lutava. Havia-me posto a escrever Buda, como os selvagens que, em
suas grutas gravavam com uma pedra pontuda ou pintavam em vermelho e
branco os animais ferozes que rondavam, esfomeados, em volta deles.
Eles se esforçavam também ao gravá-los e pintá-los, em fixá-los
na rocha; se não o tivessem feito, as feras se teriam precipitado
sobre eles.
Desde o dia em que escapei de ser
esmagado, a viúva passava no ar inflamado de minha solidão e me
fazia sinais balançando voluptuosamente os flancos. De dia eu era
forte, meu espírito estava alerta, eu conseguia afugentá-la.
Escrevia sob que forma o tentador se apresentou a Buda, como ele se
vestiu de mulher, como ele apoiou sobre os joelhos do asceta os seios
duros, enfim, como Buda viu o perigo, proclamou a mobilização de
todo o seu corpo e pôs em fuga o cão. Eu conseguia, também,
fazê-lo afastar-se.
A cada frase que eu escrevia, ficava
aliviado, tomava coragem, sentia o cão se retirar, afugentando pelo
exorcismo todo poderoso, a palavra. Eu lutava, de dia, com todas as
minhas forças, mas de noite, meu espírito depunha as armas, as
portas interiores se abriam e a viúva entrava.
De manhã, acordava esgotado e vencido e
a guerra recomeçava. Às vezes erguia a cabeça: era o fim da tarde;
a luz, escorraçava, fugia, a obscuridade caía sobre mim
bruscamente. Os dias se encurtavam, o Natal estava perto, eu me
encarniçava na luta e me dizia: “Eu não estou só. Uma grande
força, a luz, combate, ela também, ora vencida ora vitoriosa, não
perde as esperanças. Eu luto e espero com ela!”.
Parecia-me, e isso me dava coragem, que
lutando contra a viúva eu estava obedecendo a um grande ritmo
universal. É esse corpo, pensava eu, que a matéria astuciosa
escolheu para abater docemente e extinguir a chama livre que existia
em mim. Eu me dizia: “divina é a força imortal que transforma a
matéria em espírito.
Cada homem tem em si um fragmento desse
turbilhão divino e é por isso que ele pode converter o pão, a água
e a carne em pensamento e ação. Zorba tem razão: diz-me o que
fazes do que comes e eu te direi quem és!”
Eu me esforçava então, dolorosamente,
para transformar em Buda esse violento desejo da carne.
— Em que pensa? Você não está com a
cabeça aqui, patrão — me disse Zorba uma noite, na véspera do
Natal, duvidando do demônio contra o qual eu me debatia.
Fingi não ouvir. Mas Zorba não
abandonava tão facilmente a partida.
— Você é jovem, patrão — disse
ele.
E, subitamente, sua voz teve uma
ressonância amarga e irritada:
— Você é jovem, sólido, como bem,
bebe bem, respira o ar do mar que lhe revigora, você armazena
forças, e o que você faz? Dorme sozinho. É pena! Vá, agora, essa
noite mesmo, não perca tempo, tudo é simples neste mundo, patrão.
Quantas vezes terei que repetir? Não complique tudo!
Eu tinha todo aberto diante de mim o
manuscrito sobre Buda e o folheava; ouvia as palavras de Zorba e
sabia que elas abriam um caminho seguro. Com elas, estava também o
espírito de Mara, o astucioso intermédio, que chamava.
Escutava sem dizer nada, resolvido a
resistir folheando lentamente o manuscrito e assobiava para esconder
minha preocupação. Mas, Zorba, vendo que eu permanecia silencioso,
estourou:
— Esta noite é a noite de Natal, meu
velho, apresse-se, vá encontrá-la antes de ela ir para a igreja. É
essa noite que Cristo vai nascer, patrão, faça o seu milagre
também!
Eu me levantei aborrecido:
— Chega, Zorba — disse eu. — cada
um segue seu próprio caminho. O homem, fique sabendo, parece à
árvore. Você alguma vez foi perguntar à figueira por que ela não
dá cerejas? Então, cale-se! É quase meia-noite, vamos também à
igreja ver nascer o Cristo.
Zorba enfiou na cabeça seu grosso capuz
de inverno.
— Está bem — disse ele, amolado. —
vamos! Mas, faço questão de informá-lo de que o bom Deus ficaria
mais contente se você fosse essa noite a casa da viúva, como o
arcanjo Gabriel. Se o bom Deus tivesse seguido seu caminho, patrão,
ele não teria nunca ido à casa de Maria e Cristo não teria nascido
nunca. Se você me perguntar que caminho segue o bom Deus, eu diria:
aquele que conduz a Maria.
Maria é a viúva.
Ele se calou e esperou em vão a
resposta. Abriu a porta com força e saímos; com a ponta de seu
bastão batia com impaciência nas pedras do caminho.
— Sim, sim — repetia ele obstinado, —
Maria é a viúva.
— Vamos, a caminho! — disse eu, —
não resmungue!
Andávamos com passadas largas na noite
de inverno, o céu era de uma pureza extraordinária, as estrelas
brilhavam, grandes, baixas, como bolas de fogo pregadas no ar. A
noite rugia, à medida em que avançávamos pela beira da praia, como
um animal negro estendido à beira do mar.
“A partir dessa noite, dizia-me, a luz
que o inverno acuou começava a levar vantagem. Como se ela nascesse
essa noite com o menino-Deus.”
Todos os aldeões se haviam acumulado no
alvéolo quente e perfumado da igreja. Na frente os homens; atrás,
de mãos cruzadas, as mulheres. O padre Stefânio, grande, exasperado
pelo seu jejum de quarenta dias, vestido com sua pesada casula de
ouro, corria, de cá para lá, em grandes passadas, agitava o
turíbulo, cantava aos gritos, apressado de ver nascer o Cristo e de
voltar para casa a fim de atirar-se sobre a sopa gorda, os salsichões
e as carnes defumadas...
Se se dissesse: “hoje nasce à luz”,
isso não teria emocionado o coração do homem; a ideia não se
teria transformado em lenda e não teria conquistado o mundo. Teria
expressado apenas um fenômeno físico normal e não teria inflamado
nossa imaginação, quero dizer, nossa alma. Mas, a luz que nasce no
coração do inverno transformou-se em criança, a criança
transformou-se em Deus, e eis que por vinte séculos nossa alma o
guarda em seu seio e o acalenta...
Pouco depois da meia-noite, a cerimônia
mística chegava ao fim. Cristo havia nascido. Os aldeões correram
às suas casas, esfomeados, alegres, para as comilanças e para
sentir no mais fundo de suas entranhas o mistério da encarnação. O
ventre é a base sólida: pão, vinho e carne, antes de tudo; só com
pão, vinho e carne se pode criar Deus.
As estrelas brilhavam, grande como anjos,
por cima da cúpula toda branca da igreja. A Via-Láctea, igual a um
rio, corria de um lado a outro do céu. Uma estrela verde cintilava
sobre nos como uma esmeralda. Eu suspirava, emocionado.
Zorba virou-se para mim:
— Você acredita nisso, patrão, que
Deus virou homem e nasceu num estábulo? Você acredita ou não liga
para o mundo?
— Zorba, é difícil responder —
disse eu. — Eu não posso dizer que creio nem que não creio. E
você?
— Palavra, eu também já não sei mais
onde estou. Quando era criança, eu não acreditava nem um pouco nos
contos de fadas que minha avó me contava, e, no entanto, eu tremia
de emoção, eu ria, eu chorava, com se acreditasse. Quando apareceu
barba em meu queixo, deixei de lado todas essas bobagens, e só fazia
rir delas. Mas agora, na minha velhice, eu amoleci, patrão, e creio
de novo... o homem é uma máquina engraçada!
Nikos Kazantzakis, in Zorba, o Grego
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