Sei que não atentaram na mulher; nem
fosse possível. Vive-se perto demais, num lugarejo, às sombras
frouxas, a gente se afaz ao devagar das pessoas. A gente não revê
os que não valem a pena. Acham ainda que não valia a pena? Se,
pois, se. No que nem pensaram; e não se indagou, a muita coisa. Para
quê? A mulher — malandraja, a malacafar, suja de si,
misericordiada, tão em velha e feia, feita tonta, no crime não
arrependida — e guia de um cego. Vocês todos nunca suspeitaram que
ela pudesse arcar-se no mais fechado extremo, nos domínios do
demasiado?
Soubessem-lhe ao menos o nome. Não;
pergunto, e ninguém o intéira. Chamavam-na de a “Mula-Marmela”,
somente, a abominada. A que tinha dores nas cadeiras: andava meio se
agachando; com os joelhos para diante. Vivesse embrenhada, mesmo
quando ao claro, na rua. Qualquer ponto em que passasse, parecia
apertado. Viam-lhe vocês a mesmez — furibunda de magra, de
esticado esqueleto, e o se sumir de sanguexuga, fugidos os olhos,
lobunos cabelos, a cara —; as sombras carecem de qualquer conta ou
relevo. Sabe-se se assustava-os seu ser: as fauces de jejuadora, os
modos, contidos, de ensalmeira? Às vezes, tinha o queixo trêmulo.
Apanhem-lhe o andar em ponta, em sestro de égua solitária; e a
selvagem compostura. Seja-se exato.
E nem desconfiaram, hem, de que poderiam
estar em tudo e por tudo enganados? Não diziam, também, que ela
ocultava dinheiro, rapinicado às tantas esmolas que o cego costumava
arrecadar? Rica, outromodo, sim, pelo que do destino, o terrível.
Nem fosse reles feiosa, isto vocês poderiam notar, se capazes de
desencobrir-lhe as feições, de sob o sórdido desarrumo, do sarro e
crasso; e desfixar-lhe os rugamentos, que não de idade, senão de
crispa expressão. Lembrem-se bem, façam um esforço. Compesem-lhe
as palavras parcas, os gestos, uns atos, e tereis que ela se
desvendava antes ladina, atilada em exacerbo. Seu antigo crime? Mas
sempre escutei que o assassinado por ela era um hediondo, o cão de
homem, calamidade horribilíssima, perigo e castigo para os
habitantes deste lugar. Do que ouvi, a vocês mesmos, entendo que,
por aquilo, todos lhe estariam em grande dívida, se bem que de tanto
não tomando tento, nem essa gratidão externassem. Tudo se compensa.
Por que, então, invocar, contra as mãos de alguém, as sombras de
outroras coisas?
O cego pedia suas esmolas rudemente.
Xingava, arrogava, desensofrido, dando com o bordão nas portas das
casas, no balcão das vendas. Respeitavam-no, mesmo por isso, jamais
se viu que o desatendessem, ou censurassem ou ralhassem, repondo-o em
seu nada. Piedade? Escrúpulo? Mais seria como se percebessem nele,
de obscuro, um mando de alma, qualidade de poder. Chamava-se “o
Retrupé”, sem adiante. Como a Mula-Marmela, os dois, ambos:
uns pobres, de apelido. E vocês não veem que, negando-lhes o de
cristão, comunicavam, à rebelde indigência de um e outra, estranha
eficácia de ser, à parte, já causada?
Ao Retrupé, com seu encanzinar-se,
blasfemífero, e prepotente esmolar, ninguém demorava para dar
dinheiro, comida, o que ele quisesse, o pão-por-deus. — “Ele
é um tranca!” — o cínico e canalha, vilão. Mas só, às
vezes, alguém, depois e longe, se desabafava. O homem maligno, com
cara de matador de gente. Sobre os trapos, trazia um facão,
pendente. Estendia, imperioso, sua mão de tamanho. E gritava, com
uma voz de cão, superlativa. Se alguém falasse, ou risse, ele
parava, esperava o silêncio. Escutava muito, ao redor de si. Mas
nunca ouvia tudo; não sabia nem podia.
Tinha medo, também; disso vocês nunca
desconfiaram. Temia-a, a ela, à mulher que o guiava. A Mula-Marmela
chamava-o, com simples sílaba, entre dentes, quase esguichado um
“ei” ou “hã” — e o Retrupé se movia de lá,
agora apalpante, pisando com ajuda; balançava o facão, a bainha
presa a um barbante, na cintura. Sei que ele, leve, breve, se
sacudira. Desciam a rua, dobraram o beco, acompanharam-se por lá, os
dois, em sobrossoso séquito. Rezam-se ódio. Lé e cré, pelas ora
voltas, que qual, que tal, loba e cão. Como era que ficavam nesse
acordo de incomunhão, malquerentes, parando entre eles um frio
figadal? O cego Retrupé era filho do finado marido dela, o
“Mumbungo”, que a Mula-Marmela assassinara.
Vocês sabem, o que foi há tantos anos.
Esse Mumbungo era célebre-cruel e iníquo, muito criminoso, homem de
gostar do sabor de sangue, monstro de perversias. Esse nunca perdoou,
emprestava ao diabo a alma dos outros. Matava, afligia, matava. Dizem
que esfaqueava rasgado, só pelo ancho de ver a vítima caretear.
Será a sua verdade? Nos tempos, e por causa dele, todos estremeciam,
sem pausa de remédio. Diziam-no maltratado do miolo. Era o punir de
Deus, o avultado demo — o “cão”. E, no entanto, com a mulher,
davam-se bem, amavam-se. Como? O amor é a vaga, indecisa palavra.
Mas, eu, indaguei. Sou de fora. O Mumbungo queria à sua mulher, a
Mula-Marmela, e, contudo, incertamente, ela o amedrontava. Do temor
que não se sabe. Talvez pressentisse que só ela seria capaz de
destruí-lo, de cortar, com um ato de “não”, sua existência
doidamente celerada. Talvez adivinhasse que em suas mãos, dela,
estivesse já decretado e pronto o seu fim. Queria-lhe, e temia-a —
de um temor igual ao que agora incessante sente o cego Retrupé.
Soubessem, porém, nem de nada. A gente é portador.
O cego Retrupé é grande, forte. Surge,
de lá, trazido pela Mula-Marmela; agora se conduz firme, não
vacila. Dizem que bebe? Vejam vocês mesmos, porém, como essas petas
escondem a coisa singular. Todos sabem que ele não bebia, nunca,
porque a Mula-Marmela não deixava. Nem carecia de falar-lhe a paz da
probição: dava-lhe, apenas, um silêncio, terrível. E ele cumpria,
tinha a marca da coleira. Curtia afogados desejos, indecifrava-os.
Aspirava, à porta dos botequins, febril, o espírito das cachaças.
Seguia, enfim, perfidiado e remisso, mal-agradecido, raivoso, os
dentes do rato rangiam-no. Porque, ele mesmo, não sabendo que não
havia de beber, o que não fosse — ah, se! — o sangue das
pessoas. Porque sua sede e embriaguez eram fatais, medonhas outras,
para lá do ponto. Seria ele, realmente, uma alma de Deus, hão
certeza? Ah, nem sabem. Podia também ser de outra essência — a
mandada, manchada, malfadada. Dizem-se, estórias. Assim mesmo, no
tredo estado em que tacteia, privo, mal-existente, o que é,
cabidamente, é o filho tal-pai-tal; o “cão”, também, na
prática verdade.
O pai, o Mumbungo, se vivia bem com a
mulher, a Mula-Marmela, e se ela precisava dele, como os pobres
precisam uns dos outros, por que, então, o matou? Vocês nunca
pensaram nisso, e culparam-na. Por que hão de ser tão infundados e
poltrões, sem espécie de perceber e reconhecer? Mas, quando ela
matou o marido, sem que se saiba a clara e externa razão, todos aqui
respiraram, e bendisseram a Deus. Agora, a gente podia viver o
sossego, o mal se vazara, tão felizmente de repente. O Mumbungo;
esse, foi o que tivera de se revoltar a um outro lugar, foi como alma
que caiu no inferno. Mas não a recompensaram, a ela, a Mula-Marmela;
ao contrário: deixaram-na no escárnio de apontada à amargura, e na
muda miséria, pois que eis. Matou o marido, e, depois, própria
temeu, forte demais, o pavor que se lhe refluía, caída, dado
ataque, quase fria de assombro de estupefazimento, com o cachorro
uivar. E ela, então, não riu. Vocês, os que não a ouviram não
rir, nem suportam se lembrar direito do delirido daquela risada.
Se eu disser o que sei e pensam, vocês
inquietos se desgostarão. Nem consintam, talvez, que eu explique,
acabe. A mulher tinha de matar, tinha de cumprir por suas mãos o
necessário bem de todos, só ela mesma poderia ser a executora —
da obra altíssima, que todos nem ousavam conceber, mas que, em seus
escondidos corações, imploravam. Só ela mesma, a Marmela, que
viera ao mundo com a sina presa de amar aquele homem, e de ser amada
dele; e, juntos, enviados. Por quê? Em volta de nós, o que há, é
a sombra mais fechada — coisas gerais. A Mula-Marmela e o Mumbungo,
no fio a fio de sua afeição, suspeitassem antecipadamente da
sanção, e sentença? Temia-a, ele, sim, e o amor que tinha a ela
colocava-o à mercê de sua justiça. A Marmela, pobre mulher, que
sentia mais que todos, talvez, e, sem o saber, sentia por todos,
pelos ameaçados e vexados, pelos que choravam os seus entes
parentes, que o Mumbungo, mandatário de não sei que poderes, atroz
sacrificara. Se só ela poderia matar o homem que era o seu, ela
teria de matá-lo. Se não cumprisse assim — se se recusasse a
satisfazer o que todos, a sós, a todos os instantes, suplicavam
enormemente — ela enlouqueceria? A cor do carvão é um mistério;
a gente pensa que ele é preto, ou branco.
E outra vez vejo que vêm, pela
indiferente rua, e passam, em esmolambos, os dois, tão fora da vida
exemplar de todos, dos que são os moradores deste sereno nosso
lugar. O cego Retrupé avança, fingindo-se de seguro, não dá à
Mula-Marmela a ponta do bordão para segurar, ela o guia apenas com
sua dianteira presença, ele segue-a pelo jeito, pelo se deslocar do
ar — como em trasvoo se vão os pássaros; ou o que ele percebe à
sua frente é a essência vivaz da mulher, sua sombra-da-alma,
fareja-lhe o odor, o lobum? Notem que o cego Retrupé mantém sempre
muito levantada a cabeça, por inexplicado orgulho: que ele provém
de um reino de orgulho, sua maligna índole, o poder de mandar, que
estarrece. E ele traz um chapéu chato, nem branco nem preto. Viram
como esse chapéu lhe cai muitas vezes da cabeça, principalmente
quando ele mais se exalta, gestilongado abarbarado e maldoso,
reclamando com urgência suas esmolas do povo. Mas, notaram como é
que a Mula-Marmela lhe apanha do chão o chapéu, e procura limpá-lo
com seus dedos, antes de lho entregar, o chapéu que ele mesmo nunca
tira, por não respeitar a ninguém? Sei que vocês não se
interessam nulo por ela, não reparam como essa mulher anda, e sente,
e vive e faz. Repararam como olha para as casas com olhos simples,
livres do amaldiçoamento de pedidor? E não põe, no olhar as
crianças, o soturno de cativeiro que destinaria aos adultos. Ela
olha para tudo com singeleza de admiração. Mas vocês não podem
gostar dela, nem sequer sua proximidade tolerem, porque não sabem
que uma sina forçosa demais apartou-a de todos, soltou-a. Apara, em
seu de-cor de dever, o ódio que deveria ir só para os dois homens.
Dizem-na maldita: será; e? Porém, isto, nunca mais repitam, não me
digam: do lobo, a pele; e olhe lá! Há sobrepesos, que se
levam, outros, e são a vida.
Mas, com tanto, está que ninguém sabe o
que entre os dois verdadeiramente se compassa — do desconchavo e
desacerto de assim perambularem, torvos, no monótono, em farrapos,
semoventes: do que vocês apenas se divertem, tiram graças e
chocarra. Se o que os há é apenas embruxar e odiar, loba contra
cão, ojeriza e osga; convocam demônios? Ou algum encoberto
ultrapassar, — posto o que também há: uma irmandade das almas
más, alcatéia e matilha? Não, não há ódio; engano. Ela, não.
Ela cuida dele, guia-o, trata-o — como a um mais infeliz, mais
feroz, mais fraco. Desde que morreu o homem-marido, o Mumbungo, ela
tomou conta deste. Passou a cuidá-lo, na reobriga, sem buscar
sossego. Ela não tinha filhos. — “Ela nunca pariu...” —
vocês culpam-na. Vocês, creio, gostariam de que ela também se
fosse, desaparecesse no não, depois de ter assassinado o marido.
Vocês odeiam-na, destarte.
Mas, se ela também se tivesse matado,
que seria de vocês, de nós, às muitas mãos do Retrupé, que ainda
não estava cegado, nos tempos; e que seria tão pronto para ser
sanguinaz e cruel-perverso quanto o pai — e o que renega de Deus —
da pele de Judas, de tão desumana e tremenda estirpe, de apavor?
Seus os-olhos, do Retrupé, ainda eram
sãos: para espelhar inevitável ódio, para cumprir o dardejar, e
para o prazer de escolher as vítimas mais fáceis, mais frescas. Só
aí, se deu que, em algum comum dia, o Retrupé cegou, de ambos
aqueles olhos. Souberam vocês como foi? Procuraram achar? Sabem,
contudo, que há leites e pós, de plantas, venenos que ocultamente
retiram, retomam a visão, de olhos que não devem ver. Só com isso,
sem precisão de mais, e já o Retrupé parava, um ser quase inócuo,
um renunciado. E vocês, bons moradores do lugar, ficavam defendidos,
a cobro de suas infrenes celeradezas. Talvez, ele não precisasse de
danado morrer como o Mumbungo, seu pai. Talvez, me pergunto, o
próprio Mumbungo descarecesse de ser morto, se acaso, por ponto,
alguém pensasse antes nessas ervas cegadoras, ou soubesse já então
de sua aplicação e efeito. Se assim, pois, haver-se-ia agora a
Mula-Marmela guiando a dois, pelas ruas, e deles com terrível
dever-de-amor cuidando, como se fossem os filhos que ela queria, os
que ela não pariu nem parirá, nunca — o dócil morto e o impedido
cego. A pacto de tolher-lhes as ainda possíveis malícias, e
dar-lhes, como em sua antiquíssima linguagem ela diz: gasalhado e
emparo. Vocês, porém, fio que nem nunca lhe escutaram a voz
— à surda.
Também o cego Retrupé se intimida dessa
voz, rara tanto. Sabem o que é tão estúrdio? — que, mesmo um que
não vê, sabe que precisa de apartar a cabeça: ele faz isso, para
não encarar com a mulher odiosa. O cego Retrupé volta-se de frente
para o ponto onde estão as sensatas, quietas pessoas, que ele odeia
em si, pelo desprezamento de todos, na pacatez e concórdia. Ele
precisava de matar, para a fundo se cumprir, desafogado e bem. Mas,
não pode. Porque é cego, apenas. O cego Retrupé, sedicioso, então,
insulta, brada espumas, ruge — nas gargantas do cão. Sabe que é
de outra raça, que vem do ainda horroroso, informe; que ainda não
entendeu a mansidão, pelo temor? Então, o cego Retrupé esbarra com
o impoder da cegueira; agora, ele não pode alcançar ninguém, se a
raiva mais o cega; pode? O cego Retrupé cochicha consigo — ele
ofende o invisível. Para ele, graças à cegueira, este nosso mundo
já é algum além. E se assim não fosse? Alguém seria capaz de
querer ir pôr o açamo no cão em dana? E vocês ainda podem culpar
esta mulher, a Marmela, julgá-la, achá-la vituperável? Deixem-na,
se não a entendem, nem a ele. Cada qual com sua baixeza; cada um com
sua altura.
Saibam ver como ela sabe dar descargo a
si. Sim, ela é inobservável; vocês não poderiam. Mas, reparando
com mais tento, veriam, pelo menos, como ela não é capaz de pegar
estouvadamente em alguma coisa; nem deixa de curvar-se para apanhar
um caco de vidro no chão da rua, e pô-lo de lado, por perigoso. Ela
abaixa assaz os olhos. Pelo marido, seu morto; pode, porque o matou
sem inúteis sofrimentos. Se não o matasse, ele se teria condenado
ainda mais? Ela afasta do botequim o cego Retrupé, turbador, remisso
e bulhento. Só este é o seu, deles, diálogo: um pigarro e um
impropério. Ele a segue, caninamente. Vão-se; nunca nenhum de vocês
os observou, a gente não consegue nem persegue os fios feixes dos
fatos. Vivem em aterrador, em coisa de silêncio, tão juntos, de
morar em esconderijos. A luz é para todos; as escuridões é que são
apartadas e diversas.
Diziam que, em outro tempo, ao menos,
entre eles teria havido alguma concubinagem. Cambonda? Vocês sabem
que isso é falso; e como a gente gosta de aceitar essas simples,
apaziguadoras suposições. Sabem que o cego Retrupé, canhim e
discordioso, ela mesma o conduz, paciente, às mulheres, e espera-o
cá fora, zela para que não o maltratem. Isto, porém, faz tempo.
Hoje ele está envelhecido, virou em macilento, grisalho, as cãs
assentam-lhe bem, quando o chapéu cai. Estes tempos, durante que
deixamos de conhecê-los e averiguá-los. O cego Retrupé anda meio
caído, amorviado, em escanifro e escanzelo. Parece que, ao mesmo
passo, seu modo de medo da Mula-Marmela muda e aumenta. Fraqueia-lhe
também a fúria alastradora e áspera de viver: não exerce com o
mesmo entono puxar pelo seu direito — o feroz direito de pedir.
Parece que seu temor fazia-o murmurar
queixumes, súplicas, à Mula-Marmela. E, no entanto, ela cada dia
para com ele mais se abranda, apiedada de seu desvalor. Mas ele não
crê, não pode saber, não confia dela, nem da gente. O
entressentir-se, entre as pessoas, vem de regra com exageros, erro, e
retardo. Ele sussurra disfarçada e impessoalmente seus pedidos de
perdão; vocês notaram? A Mula-Marmela ouvia-o, sem parecer que.
Fugia de olhá-lo. Sei, vocês não notaram, nada. E, mesmo, agora,
vocês se sentem um pouco mais garantidos, tranquilos estamos. É de
crer que, breve, estaremos livres do que não amamos, do que
danadamente nos enoja, pasma.
Conta-se-me que ele quis matá-la. Em
hora em que seu medo se derramou maior, saber-se-á lá por quê?
Tido que já se estava maltreito, quando adoeceu, mal, de febre
acesa. Sentara-se à beira da rua, para arquejar. De repente,
levantou-se, sem bordão, estorvinhado, gritou, bramou: exaltado como
um cão que é acordado de repente. Sacou o facão, tacava-o,
avançava às doidas, às mesmo cegas, tentando golpeá-la, em seu
desatinado furor. E ela, erguida onde estava, permaneceu, não se
moveu, não se intimidava? Olhava na direção do não. Se ele
acertasse, poderia em carnes trucidá-la. Mas, aos poucos, acreditou
que o facão não a encontraria nunca, sentiu-se desamparado demais e
sozinho. Temeu, de todo em pé. O facão lhe caiu da mão. Seu medo
não tinha olhos para encher.
Parece que gemeu e chorou: — “Mãe...
Mamãe... Minha mãe!”... — esganiçado implorava, quando
retombou sentado no chão, cessada a furibundância; e tremia
estremecidamente, feito os capins dos pastos. Estava já no fino do
funil, é de crer que. A Mula-Marmela, ela veio, se chegou, sem dizer
nem o sussurrar. Apanhou-lhe o chapéu, limpou-o, tornou-o a pôr na
cabeça dele, e trouxe também o facão, recolocou-o em sua cintura,
na velha bainha. Ele, com o se apequenar de sofrer e tremer,
semelhava um bicho do fundo da floresta. Diz-se que ela teria
lágrimas nos olhos; que falou, soturna de ternuras terríveis: —
“Meu filho...” E olhou para uma banda, disse a alguma
coisa mais, como se falando ao outro; soluçava, também, pelo
Mumbungo, seu reconduzido marido, por sua parte, de seu ato. Disse,
vocês não quererão saber, são em-diabas confusões, disso vocês
não sabem. E, se, para quê? Se ninguém entende ninguém; e ninguém
entenderá nada, jamais; esta é a prática verdade.
Sim, os dois, ficaram, até ao anoitecer,
e pela noite entrada, naquela solidão próxima, numa beira de cerca.
Alguém os acudiu? Diz-se que ele padecia uma dor terrivelmente, de
demasiado castigo, e uma sufocação medonha de ar, conforme nem por
uma esperança ainda nem não agoniava. Só estrebuchava. Não viram,
na madrugada, quando ele lançou o último mau suspiro. Sim, mas o
que vocês creem saber, isto, seriamente afirmam: que ela, a
Mula-Marmela, no decorrer das trevas, foi quem esganou
estranguladamente o pobre-diabo, que parou de se sofrer, pelos
pescoços; no cujo, no corpo defunto, após, se viram marcas de suas
unhas e dedos, craváveis. Só não a acusaram e prenderam, porque
maior era o alívio de a ver partir, para nunca, daí que, silenciosa
toda, como era sempre, no cemitério, acompanhou o cego Retrupé às
consolações. Vocês, distantemente, ainda a odiavam?
E ela ia se indo, amargã, sem ter de se
despedir de ninguém, tropeçante e cansada. Sem lhe oferecer ao
menos qualquer espontânea esmola, vocês a viram partir: o que
figurava a expedição do bode — seu expiar. Feia, furtiva, lupina,
tão magra. Vocês, de seus decretantes corações, a expulsavam.
Agora, não vão sair a procurar-lhe o corpo morto, para, contritos,
enterrá-lo, em festa e pranto, em preito? Não será custoso
achá-lo, por aí, caído, nem légua adiante. Ela ia para qualquer
longe, ia longamente, ardente, a só e só, tinha finas pernas de
andar, andar. É caso, o que agora direi. E, nunca se esqueçam,
tomem na lembrança, narrem aos seus filhos, havidos ou vindouros, o
que vocês viram com esses seus olhos terrivorosos, e não souberam
impedir, nem compreender, nem agraciar. De como, quando ia a partir,
ela avistou aquele um cachorro morto, abandonado e meio já podre, na
ponta-da-rua, e pegou-o às costas, o foi levando —: se para livrar
o logradouro e lugar de sua pestilência perigosa, se para piedade de
dar-lhe cova em terra, se para com ele ter com quem ou quê se
abraçar, na hora de sua grande morte solitária? Pensem, meditem
nela, entanto.
Guimarães Rosa, in Primeiras estórias
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