terça-feira, 6 de julho de 2021

Robert Louis Stevenson, "O pavilhão das dunas"

The pavillion on the links” é antes de mais nada a história de uma misantropia: uma misantropia juvenil, feita de autossuficiência e selvageria, misantropia que num jovem quer dizer sobretudo misoginia e que conduz o protagonista a cavalgar sozinho pelos brejos da Escócia, dormindo sob a tenda e nutrindo-se de porridge. Mas a solidão de um misantropo não abre muitas possibilidades narrativas: o conto nasce do fato de que os jovens misantropos ou misóginos são dois, e ambos se escondem, um espionando o outro, numa paisagem que por si só evoca a solidão e a selvageria.
Podemos dizer então que “The pavilion on the links” é a história da relação entre dois homens que se assemelham, quase dois irmãos, ligados por uma misantropia e misoginia comuns, e de como a amizade deles se transforma, por razões que permanecem misteriosas, em inimizade e luta. Mas nas tradições romanescas a rivalidade entre dois homens pressupõe uma mulher. E uma mulher que abra caminho no coração de dois misóginos deve ser objeto de um amor exclusivo e sem condições, a ponto de levar os dois a rivalizar em cavalheirismo e altruísmo. Será então uma mulher ameaçada por um perigo, por inimigos perante os quais os dois ex-amigos tornados rivais se vejam solidários e aliados mesmo na rivalidade amorosa.
Diremos então que “The pavilion on the links” é um grande jogo de esconde-esconde jogado por adultos: ocultam-se e vigiam-se os dois amigos, e o jogo deles tem a mulher como prêmio; e ocultam-se e vigiam-se os dois amigos e a mulher, por um lado, e os misteriosos inimigos por outro, num jogo em que se aposta a vida de uma quarta personagem que não tem outro papel além de esconder-se, numa paisagem que parece feita de propósito para esconder-se e vigiar-se.
Portanto, “The pavilion on the links” é a história que resulta de uma paisagem. Das dunas desoladas das costas escocesas não poderia nascer outra história senão de gente que se esconde e se vigia. Mas para pôr em evidência uma paisagem não existe sistema melhor que introduzir nela um elemento estranho e incongruente. E eis que Stevenson, para ameaçar suas personagens, faz aparecer entre os brejos e as areias em movimento da Escócia nada menos que a tenebrosa sociedade secreta italiana dos carbonários, com seus chapéus negros em forma de pão de açúcar.
Por aproximações e alternativas tratei de identificar não tanto o núcleo secreto desse conto — que, como acontece muitas vezes, tem mais de um — quanto mecanismo que assegura a sua “mordida” no leitor, seu fascínio que não diminui apesar da justaposição aproximativa de projetos e contos diferentes que Stevenson empreende e deixa cair. O mais forte deles é certamente o primeiro, o conto psicológico da relação entre os dois amigos-inimigos, quem sabe o primeiro esboço da história dos irmãos-inimigos em The master of Ballantrae, e que aqui só se insinua em definir-se numa contraposição ideológica: Northmour byroniano livre-pensador e Cassilis campeão das virtudes vitorianas. A segunda é uma narrativa sentimental, e é a mais fraca, com o peso de duas personagens convencionais a serem levadas adiante: a donzela modelo de todas a virtudes e o pai bancarroteiro fraudulento sordidamente avaro.
Acaba triunfando o terceiro motivo, o do romanesco puro, com o tema que desde o século XIX não sai de moda, da conspiração incontrolável que estende os tentáculos por todos os lados. Triunfa por vários motivos: porque a mão do Stevenson que representa com poucos traços a presença ameaçadora dos carbonários — do dedo que arranha no vidro molhado ao chapéu negro que esvoaça sobre as areias em movimento — é a mesma que (mais ou menos no mesmo período) representava a chegada dos piratas à estalagem Admiral Benbow da Ilha do tesouro. Depois, porque o fato de os carbonários, embora hostis e temíveis, desfrutarem da simpatia do autor, segundo a tradição romântica inglesa, e terem claramente razão contra o banqueiro odiado por todos introduz na complexa partida que está sendo jogada um contraste a mais, e mais convincente e eficaz que os outros: os dois amigos-rivais, aliados na defesa de Huddlestone por dever de honra, têm contudo a consciência do lado dos inimigos carbonários. E enfim porque estamos mais que nunca no espírito do jogo infantil, entre assédios, investidas, assaltos de bandos rivais.
A grande vantagem das crianças é saber retirar todas as sugestões e emoções do terreno que têm à disposição para seus jogos. Stevenson conservou esse dom: começa com a sugestão daquele pavilhão refinado que surge na natureza selvagem (em “estilo italiano”: já seria um anúncio da irrupção próxima de um elemento exótico e desconcertante?), depois a entrada clandestina na casa vazia, a descoberta da mesa pronta, o fogo aceso, as camas arrumadas, enquanto não se vê vivalma… um motivo de fábula transferido para o romance de aventuras.
Stevenson publicou “The pavilion on the links” no Cornhill Magazine, nos números de setembro e outubro de 1880; dois anos depois, em 1882, inseriu-o no volume New Arabian nights. Entre as duas edições existe uma diferença notável: na primeira, o conto figura como uma carta-testamento que um velho pai, sentindo aproximar-se a morte, deixa aos filhos para revelar-lhes um segredo de família: o modo pelo qual conheceu a mãe deles, já desaparecida; ao longo do texto, o narrador se dirige aos leitores com o vocativo “meus caros filhos”, chama a heroína de “vossa mãe”, “a vossa cara mamãe”, “a mãe de meus filhos”, e chama de “vosso avô” aquela sinistra personagem que era o pai dela. A segunda versão, aquela do livro, entra no calor da narração desde a primeira frase: “Quando jovem fui um grande solitário”; a heroína ali é indicada como “minha mulher” ou então com seu nome, Clara, e o velho como “seu pai” ou Huddlestone. Deveria ser uma daquelas mudanças que implicam todo um estilo diferente, ou melhor, uma natureza diferente do conto; ao contrário, as correções são mínimas: o corte do preâmbulo, das apóstrofes aos filhos, das expressões mais compungidas referindo-se à mãe; todo o restante permanece tal e qual. (Outras correções e cortes concernem ao velho Huddlestone, cuja infâmia na primeira versão, em vez de ser atenuada pela pietas familiar como seria de esperar, vinha acentuada. Talvez porque as convenções teatrais e romanescas tornavam bem natural que uma heroína angélica tivesse um pai sordidamente avarento, ao passo que o verdadeiro problema era o de fazer aceitar o fim atroz e não confortado por sepultura cristã de um parente, o que se justificava moralmente se o parente fosse um canalha de primeira.)
Segundo o organizador de uma edição recente na “Everyman’s Library”, M. R. Ridley, “The pavilion on the links” deve ser considerado um conto falido, as personagens não suscitam nenhum interesse no leitor: só a primeira versão, fazendo nascer a narrativa do âmago de um segredo familiar, consegue comunicar certo calor e tensão. Por isso, contrariamente à regra que pretende se considere definitiva a última edição corrigida pelo autor, M. R. Ridley recupera o texto na versão do Cornhill. Não nos sentimos obrigados a segui-lo. Em primeiro lugar não concordo com o juízo de valor: considero este conto um dos mais belos de Stevenson, e justamente na versão das New Arabian nights. Em segundo lugar, não estaria tão seguro da ordem de sequência entre as versões: penso antes em estratos diversos que acompanham as incertezas do jovem Stevenson. A abertura que o autor escolherá como definitiva é tão direta e dotada de força que imagino mais facilmente Stevenson começando a escrever com aquele estilo, seco e objetivo, como convém a uma história de aventuras. Indo adiante percebe que as relações entre Cassilis e Northmour são de uma complexidade que exige uma análise psicológica muito mais profunda do que aquela que ele pretende adotar e que por outro lado a história de amor com Clara lhe resulta fria e convencional; aí retrocede e recomeça a história, envolvendo-a numa cortina de fumaça de efeitos familiares; publica nessa versão o conto na revista; depois, insatisfeito com tais sobreposições afetadas, decide cortá-las, mas se deu conta de que para manter à distância a personagem feminina o melhor sistema é apresentá-la como conhecida e envolvê-la num respeito reverencial; por isso, adota a fórmula “minha mulher” ao invés de “vossa mãe” (exceto num ponto em que se esquece de corrigir e comete um pequeno deslize). São conjecturas minhas, que só uma pesquisa nos manuscritos poderia confirmar ou desmentir: do confronto entre as duas versões publicadas o único dado seguro que emerge é a incerteza do autor. Incerteza de algum modo conexa com o jogo de esconder-se consigo mesmo deste conto de uma infância que gostaria de prolongar-se mesmo bem ciente de que terminou.

Italo Calvino, in Por que ler os clássicos

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