Quando publiquei O que é lugar de
fala?, muitos me perguntaram se pessoas brancas também podem se
engajar na luta antirracista. Como explico naquele livro, todo mundo
tem lugar de fala, pois todos falamos a partir de um lugar social.
Portanto, é muito importante discutir a branquitude.
Pessoas brancas não costumam pensar
sobre o que significa pertencer a esse grupo, pois o debate racial é
sempre focado na negritude. A ausência ou a baixa incidência de
pessoas negras em espaços de poder não costuma causar incômodo ou
surpresa em pessoas brancas. Para desnaturalizar isso, todos devem
questionar a ausência de pessoas negras em posições de gerência,
autores negros em antologias, pensadores negros na bibliografia de
cursos universitários, protagonistas negros no audiovisual. E, para
além disso, é preciso pensar em ações que mudem essa realidade.
Se a população negra é a maioria no
país, quase 56%, o que torna o Brasil a maior nação negra fora da
África, a ausência de pessoas negras em espaços de poder deveria
ser algo chocante. Portanto, uma pessoa branca deve pensar seu lugar
de modo que entenda os privilégios que acompanham a sua cor. Isso é
importante para que privilégios não sejam naturalizados ou
considerados apenas esforço próprio.
Perceber-se é algo transformador. É o
que permite situar nossos privilégios e nossas responsabilidades
diante de injustiças contra grupos sociais vulneráveis. Pessoas
brancas, por exemplo, devem questionar por que em um restaurante,
muitas vezes, as únicas pessoas negras presentes estão servindo
mesas, ou se já foram consideradas suspeitas pela polícia por causa
de sua cor. Trata-se de refutar a ideia de um sujeito universal — a
branquitude também é um traço identitário, porém marcado por
privilégios construídos a partir da opressão de outros grupos.
Devemos lembrar que este não é um debate individual, mas
estrutural: a posição social do privilégio vem marcada pela
violência, mesmo que determinado sujeito não seja deliberadamente
violento.
Os homens brancos são maioria nos
espaços de poder. Esse não é um lugar natural, foi construído a
partir de processos de escravização. Alguém pode perguntar: “Mas
e no caso de homens brancos pobres ou homossexuais, que não
necessariamente possuem todos os privilégios sociais de homens
brancos heterossexuais ricos?”. De fato, é sempre importante levar
em consideração outras intersecções. Porém, o debate aqui é
sobre uma estrutura de poder que confere privilégio racial a
determinado grupo, criando mecanismos que perpetuam desigualdades.
Nesse sentido, mulheres brancas são
discriminadas por serem mulheres, mas privilegiadas estruturalmente
por serem brancas. O mesmo ocorre com homens brancos homossexuais,
que são discriminados pela orientação sexual, mas, racialmente
falando, fazem parte do grupo hegemônico. Isso de forma alguma
exclui as opressões que sofrem, mas o localizam socialmente no lugar
da branquitude.
O conceito de lugar de fala discute
justamente o locus social, isto é, de que ponto as pessoas partem
para pensar e existir no mundo, de acordo com as suas experiências
em comum. É isso que permite avaliar quanto determinado
grupo—dependendo de seu lugar na sociedade—sofre com obstáculos
ou é autorizado e favorecido. Dessa forma, ter consciência da
prevalência branca nos espaços de poder permite que as pessoas se
responsabilizem e tomem atitudes para combater e transformar o
perverso sistema racial que estrutura a sociedade brasileira.
O racismo é uma problemática branca,
provoca Grada Kilomba. Até serem homogeneizados pelo processo
colonial, os povos negros existiam como etnias, culturas e idiomas
diversos—isso até serem tratados como “o negro”. Tal categoria
foi criada em um processo de discriminação, que visava ao
tratamento de seres humanos como mercadoria. Portanto, o racismo foi
inventado pela branquitude, que como criadora deve se responsabilizar
por ele. Para além de se entender como privilegiado, o branco deve
ter atitudes antirracistas. Não se trata de se sentir culpado por
ser branco: a questão é se responsabilizar. Diferente da culpa, que
leva à inércia, a responsabilidade leva à ação. Dessa forma, se
o primeiro passo é desnaturalizar o olhar condicionado pelo racismo,
o segundo é criar espaços, sobretudo em lugares que pessoas negras
não costumam acessar.
Djamila Ribeiro, in Pequeno manual antirracista
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