Eu espichava meus ouvidos de criança
para escutar os recados das cartas espalhadas sobre sua mesa. A
vizinha do lado esquerdo da rua previa destinos. Uma dama de paus
junto ao valete de espada indicava amor imprevisto.
O rei de ouros predizia fortuna
interrompida pelo ás de copas. O valete de ouros revelava uma
traição, seguida de perdão. A cartomante anunciava viagens por
terras longes. Eu ensaiava adivinhar o obscuro filtrado pelas frestas
das janelas. As cartas nunca revelariam meu escondido amor.
Ao transbordar a vida se faz lágrima e
rola salgando o passado morto, mudo, que dorme no canto da boca. Não
há condimento capaz de temperar o futuro. Só se salga a carne
morta. O depois não tem pressa e chega em seu tempo, seco e frio. O
pranto acontecia pela intensidade dos porquês. Não há merecimento
ao sofrer por falta de explicações. A vida nos espia para creditar
mais culpas. Tudo era claro e sem exigências de respostas: o tomate,
o pai, a madrasta, a faca, os irmãos.
Matriculado na escola me vi diante de
imenso oceano. Para vencê-lo, só com muitas palavras. Na margem —
entre rendas de areias — as palavras eram meu barco. Com elas
atravessaria as ondas, venceria as calmarias, aportaria em outras
terras. Se era meu barco, eram também meus remos. Com elas cortava
as águas, flutuava sobre marés e me via em poesia.
Bartolomeu Campos de Queirós, in Vermelho Amargo
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