Eu desconhecia a extensão do mundo.
Minhas palavras minguadas não explicavam minha descrença na
esperança. Eu possuía, oculto em mim, também o que eu não sabia
dizer. Trazia de cor e decifradas algumas palavras: aturdido,
suspeito, profundo, deserto, promessa, solidão e um amor condenado a
minguar pelo exílio. Cobiçava conhecer mais palavras para nomear o
incômodo perpétuo instalado pela dor.
No lugar de meu irmão veio morar comigo
o Pintassilgo. Menino negro como o pássaro. Meu amigo emitia um
assobio afinado como flauta soprada por anjo. Saltávamos pelos
morros atrás de mais passarinho para conversar. O menino amigo,
cantando outros silvos, me fazia fartar-me de fugaz felicidade. E não
havia mentira mais verdadeira do que a de supor possível escutar o
coração dos pássaros.
Cinco. O correio trouxe notícias da irmã
que já não bordava mares com linhas azuis. Sua letra trêmula no
envelope indicava o urdimento de estranhas tramas. Pedia à irmã
mais nova para — em mais um de seus nascimentos — nascer ao seu
lado. Estava só, e havia meses alimentava-se de solidão. Afirmava
estar salgando seu prato com lágrimas. Sem mais para dizer-se,
despedia suplicando o acordo do pai. A irmã mais nova renasceu para
sempre em outro lugar fora do globo, sem o alfinete demarcando a
distância.
Cada despedida se anunciava dando mais
sustância às fatias do tomate. O que antes era apenas transparência
— hóstia maculada de ameaça — agora se fazia corpo e decretava
abandono. As mãos matemáticas da mulher registravam com a faca e a
força, e sobre a pele do tomate, suas premeditadas vitórias.
Há dias em que o passado me acorda e não
posso desvivê-lo. Esfrego os olhos buscando desanuviar a manhã que
embaça o dia. Deixo a cama carregado pelos fados de ontem.
Encaminho-me à cozinha sabendo não encontrar brasas cobertas de
cinzas. Sorvo um pouco de café, e o sabor do quintal de meu avô já
não me vem à boca. Sem possuir um olho de vidro, diviso o mundo
vivido do mundo sonhado, com a nitidez da loucura. Meu real é mais
absurdo que minha fantasia. O presente é a soma de nostalgias, agora
irremediáveis. A memória suporta o passado por reinventá-lo
incansavelmente. Tento espantar o presente balbuciando uma nova
palavra. Tudo é maio, tudo é seco, tudo é frio.
Bartolomeu Campos de Queiroz, in Vermelho Amargo
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