segunda-feira, 12 de julho de 2021

Os capitães de Conrad

Joseph Conrad morreu há trinta anos, em 3 de agosto de 1924, em sua casa de campo de Bishopsbourne, próximo a Canterbury. Tinha 66 anos, vinte dos quais passou navegando e outros trinta escrevendo. Ainda vivo foi um escritor de sucesso, mas o grande êxito junto à crítica europeia começou após a morte: em dezembro de 1924, saía um número da Nouvelle Revue Française dedicado inteiramente a ele, com textos de Gide e Valéry: o ataúde do velho capitão de longo curso descia ao mar com a guarda de honra da literatura mais refinada e intelectual. Na Itália, todavia, suas primeiras traduções chegam com a encadernação de capa vermelha dos livros de aventuras da Sonzogno, mas já Emilio Cecchi chamara a atenção dos leitores de faro apurado.
Nesses poucos dados já se acham implícitos os apelos contrastantes que a figura de Conrad exerceu: a experiência de vida prática e movimentada, a veia copiosa de romancista popular, a sofisticação formal de discípulo de Flaubert e o parentesco com a dinastia decadentista da literatura mundial. Hoje, quando seu sucesso parece enraizado na Itália, pelo menos considerando o número de traduções (a Bompiani edita as obras completas, a Einaudi e Mondadori o traduzem esporadicamente, em grandes volumes ou em edições populares, a Universale Economica publicou recentemente dois pequenos volumes), podemos tentar definir o que significou e significa este escritor para nós.
Creio que fomos muitos a aproximar-nos de Conrad movidos por um amor recorrente pelos escritores “aventurosos” — mas não aventurosos apenas: aqueles para quem a aventura serve para dizer coisas novas aos homens e as histórias e os países extraordinários servem para marcar com mais evidência sua relação com o mundo. Na minha estante ideal, Conrad tem lugar garantido junto com o aéreo Stevenson, que é quase o seu oposto, como vida e estilo. Contudo, mais de uma vez estive tentado a deslocá-lo para outra prateleira — com acesso mais difícil para mim —, a dos romancistas analíticos, psicológicos, dos James, dos Proust, dos recuperadores incansáveis de cada migalha de sensações vividas; ou até na dos estetas mais ou menos malditos, à maneira de Poe, tomados de amores transpostos; quando também as suas obscuras inquietudes de um universo absurdo não o remetam para a divisória — ainda não bem-ordenada e selecionada — dos “escritores da crise”.
Porém, conservei-o sempre lá, ao alcance da mão, com Stendhal que com ele se parece tão pouco, com Nievo que não tem nada a ver com ele. Porque, mesmo sem acreditar em muitas coisas dele, sempre acreditei que fosse um grande capitão e que inserisse em seus contos aquela coisa que é tão difícil de escrever: o sentido de uma integração com o mundo conquistada na vida prática, o senso do homem que se realiza nas coisas que faz, na moral implícita no trabalho, no ideal de saber estar à altura da situação, tanto na coberta dos veleiros quanto numa página.
Este é o cerne da narrativa conradiana. O espelho do mar, coletânea de prosas sobre temas de marinhagem: a técnica dos desembarques e das partidas, as âncoras, os velames, o peso da carga, e assim por diante. (O espelho do mar foi traduzido — pela primeira vez, creio — em belíssima prosa italiana por Piero Jahier — que deve ter se divertido e torturado sabe-se lá quanto com toda aquela terminologia náutica — para os volumes X-XI das obras completas da Bompiani, que contêm entre outros também os maravilhosos Contos de mar e de costa, que já saíram com a mesma tradução na “Universale Einaudi”.)
Quem conseguiu, como Conrad nessas prosas, descrever os instrumentos de trabalho com tanto apuro técnico, com amor tão apaixonado e com uma tal ausência de retórica e esteticismo? A retórica desponta só no final, com a exaltação da supremacia naval inglesa, a evocação de Nelson em Trafalgar, mas serve para sublinhar um fundo prático e polêmico desses escritos, que está sempre presente quando Conrad fala de mar e navios, e o imaginamos absorto na contemplação de abismos metafísicos: ele sempre punha o acento na saudade dos costumes navais na época da vela, exaltava sempre um mito próprio de marinharia britânica que estava se desmontando.
Uma polêmica tipicamente inglesa, pois Conrad foi inglês, escolheu a nacionalidade e venceu, e se a sua figura não se situa no quadro social inglês, se é considerado apenas um “hóspede ilustre” daquela literatura, como o definiu Virginia Woolf, não se pode dar uma definição histórica exata em relação a ele. Que tivesse nascido polonês e se chamasse Teodor Konrad Nalecz Korzieniowski, e tivesse “a alma eslava” e o complexo da pátria abandonada, e se parecesse com Dostoiévski, mesmo que o odiasse por questões nacionais, são coisas sobre as quais se escreveu muito e que no fundo pouco nos interessam. Conrad decidiu entrar na marinha mercantil inglesa aos vinte anos e na literatura inglesa aos 27. Da sociedade inglesa não assimilou tradições familiares, nem cultura nem religião (permaneceu sempre estranho a estas últimas): mas ali se inseriu por meio do trabalho no mar e dela fez seu passado, o habitus mental, e desdenhou aquilo que lhe parecia contrário ao seu costume. É uma personagem tipicamente inglesa, o capitão-gentleman, aquele que pretendeu representar na vida e nas mais diferentes encarnações fantásticas: heroica, romântica, quixotesca, caricatural, caprichosa, fracassada, trágica. De Mac Whirr, o impassível dominador do Typhoon, ao protagonista de Lord Jim, que foge da obsessão de um ato seu de vileza.
Lord Jim de capitão passa a comerciante: e aqui se abre ainda mais a exuberante galeria de personagens de traficantes europeus “enredados” nos trópicos que povoa os seus romances. Eram, também essas, figuras conhecidas durante a sua experiência naval no arquipélago malaio. A etiqueta aristocrática do oficial de marinha e a degradação dos aventureiros falidos são os dois polos entre os quais oscila a sua participação humana.
Essa paixão pelos párias, pelos vagabundos, pelos maníacos existiu também num escritor assaz distante, mas em parte contemporâneo: Máximo Gorki. E é curioso notar como o interesse por uma tal humanidade, tão embebido de prazer irracional e decadente (interesse que foi próprio de toda uma estação literária mundial, até Knut Hamsum e Sherwood Anderson), tenha sido o terreno em que tanto o conservador britânico quanto o revolucionário russo mergulharam as raízes de uma concepção humana sólida e vigorosa.
Assim acabamos falando das ideias políticas de Conrad: de seu feroz espírito reacionário. Claro, no fundo de um horror tão exasperado, obsessivo pela revolução e pelos revolucionários (que o levou a escrever romances inteiros contra os anarquistas, sem nunca ter conhecido sequer um nem de vista) estavam sua educação de nobre proprietário de terras polaco e os ambientes que frequentou quando jovem, em Marselha, entre exilados monarquistas espanhóis e ex-escravagistas americanos, contrabandeando armas para dom Carlos. Mas só se o situarmos no contexto inglês é que podemos reconhecer na sua posição um nó histórico semelhante ao do Balzac de Marx e ao do Tolstói de Lênin.
Conrad viveu num período de transição do capitalismo e do colonialismo britânico: a passagem da navegação a vela para a era do vapor. O seu mundo heroico é a civilização dos veleiros dos pequenos armadores, um mundo de clareza racional, de disciplina no trabalho, de coragem e dever contrapostos ao mesquinho espírito de lucro. A nova linguagem do mar, dos navios a vapor das grandes companhias, lhe parece sórdida e vil, como o capitão e os oficiais do Patna, que pressionam Lord Jim a trair-se a si mesmo. Assim quem ainda sonha com as antigas virtudes se transforma num dom Quixote ou se rende, arrastado para o outro polo da humanidade conradiana: os dejetos humanos, os agentes comerciais sem escrúpulos, os burocratas coloniais “enterrados”, todas as sobras humanas da Europa que começam a reunir-se nas colônias e que Conrad contrapõe aos velhos comerciantes-aventureiros românticos como o seu Tom Lingard.
No romance Vitória, que se desenrola numa ilha deserta, num feroz jogo de esconde-esconde, há o quixote inerme, Heyst, há os sórdidos desperados e a mulher combativa, Lena, que aceita a luta contra o mal, tomba morta, mas triunfa moralmente sobre o caos do mundo.
Porque, naquele ambiente de cupio dissolvi que frequentemente perpassa as páginas conradianas, a confiança nas forças do homem jamais desaparece. Mesmo distante de qualquer rigor filosófico, Conrad intuiu o momento crucial do pensamento burguês em que o otimismo racional perdia as últimas ilusões e uma erupção de irracionalismos e misticismos ganhava terreno. Conrad via o universo como algo obscuro e inimigo, mas a ele contrapunha as forças do homem, sua ordem moral e coragem. Perante uma avalanche negra e caótica que lhe vinha em cima, uma concepção do mundo repleta de mistérios e desesperos, o humanismo ateu de Conrad resiste e finca os pés como Mac Whirr no meio do tufão. Foi um reacionário irredutível, mas hoje a sua lição só pode ser captada plenamente por quem tem confiança nas forças do homem, por quem reconhece a própria nobreza no trabalho, por quem sabe que aquele “princípio de fidelidade” que ele prezava sobremaneira não pode estar dirigido só para o passado.

Italo Calvino, in Por que ler os clássicos

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