quarta-feira, 7 de julho de 2021

Era um sonho feliz

Era um sonho feliz e eu tinha o sentimento de que estava sonhando ou de que parecia um sonho ou revivia um momento antigo — talvez eu tivesse 18 anos e descesse a rua da Bahia na madrugada escura e gelada de inverno, a caminho do quartel, na minha farda de linha de tiro, na Belo Horizonte de antigamente, e senti que ela andava a meu lado, e isto era um milagre, porquanto eu só deveria conhecê-la muitos e muitos anos depois. Entretanto ela conversava comigo amorosa e natural, e eu a achava singela e muito alta, não sei por que me parecia que seus seios antes não eram assim tão pequenos, redondos e sobretudo altos sob o vestido branco. Ela dava largas passadas e me segurava um braço rindo, cantando — “marcha soldado, cabeça de papel” — seu riso era muito claro e tinha alguma coisa de riso de menina, e ela se dizia minha noiva.
A rua estava deserta, o Bar Trianon estava fechado. Nossos passos cantavam, e ainda havia estrelas no céu. Eu tinha o sentimento vivo de que estava feliz, agora ela marchava assobiando — haveria também um pedaço de lua e parecia que ele se movia com nosso movimento, se balançando suavemente no céu.
Olhei-a, e vi uma claridade leitosa banhando seu ombro e sua garganta; no fundo, estrelas. Apertei o seu braço no meu, alarguei as passadas, ela acertava o passo rindo, de repente disse: “Olha!”
Senti alguma coisa diferente em sua voz, pressenti que ia acontecer uma tristeza, no mesmo instante senti pena de mim — eu estava tão feliz marchando a seu lado, eu a sentia tão minha e achava tão justo que ela tivesse me aparecido, e marcharíamos eternamente, tão jovens e amigos pelas ruas do mundo — andaríamos em Paris, em Cachoeiro, numa praça de Nairobi, em Roma...
Olhei, era apenas a noite, as estrelas tremiam, em algum lugar um pássaro piava. Então me voltei e havia muitas pessoas, um sujeito do Banco da Lavoura, um colega do tiro-de-guerra, um capitão da FEB e um político do PRM e eles todos me olhavam com estranheza. As portas do Trianon estavam abertas, havia sujeitos parados me olhando, um era Edgard Andrade, outro parecia Jarbas, mas não era Jarbas do Amaral Carvalho. Perguntei: “Que horas são?”
Sampaio me disse que eu estava todo sujo de batom e minha roupa estava amassada e suja, os punhos de minha camisa estavam negros. “Por que você está assim?” me perguntavam.
Eu então disse o nome de minha namorada. Alguém disse: “Ela foi-se ontem!”. Outro o olhou irritado: “Ontem não, anteontem!” Ela tinha partido para o Rio, depois iria à Europa, e fui submetido ali mesmo, sob a forte luz do sol, de encontro a um muro, a um desagradável interrogatório. Havia um jovem repórter de nariz grande e óculos que tomava nota, ia sair no jornal assim: “Ficou apurado que o indivíduo Rubem Braga tinha vagado pelas ruas durante dois dias e duas noites e estava maltrapilho, em situação lamentável.” Tive vontade de dizer-lhe que não era um indivíduo, eu também era jornalista, havia pessoas nos jornais que me conheciam, como Newton Prates, Otávio Xavier Ferreira, Chico Martins.
Mas o diretor do ginásio, Dr. Aristeu, me olhava severamente, e seus óculos faiscavam de grave reprovação. “O senhor, filho do Coronel Braga, que vergonha!” Sentia-me infame, mas sobre todas as humilhações me deu de repente a grande tristeza, o grande desespero de ela haver partido, estar tão longe sem sequer se lembrar de mim — ela estaria naquele momento, a esgalga judia, andando numa rua de Londres, quem sabe, com aqueles seios pequenos, redondos, tão altos, tão brancos, tão inesquecíveis, ah! tão eternamente inesquecíveis.

Rubem Braga, in Recado de primavera

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