Na porta surgiu um rapazinho, descalço,
descabelado, com grandes olhos espantados. É assim que os ícones
representam São João Batista, os olhos desmesuradamente crescidos
pela fome e pela reza.
— Salve Mimito! — gritaram alguns
rindo.
Toda aldeia tem o seu inocente, e se não
o tem, fabrica um para passar o tempo. Mimito era o inocente da
aldeia.
— Amigos — gritou ele com sua voz
trêmula e afeminada. — amigos, a viúva Surmelina perdeu sua
cabrita. Para quem a encontrar, cinco litros de vinho como
recompensa.
— Vá embora! — gritou o velho
Mavrandoni. — Vá embora!
Mimito, aterrorizado, se enrodilhou num
canto, perto da porta.
— Sente-se, Mimito! Vem beber um raki e
esquentar-se — disse o tio Anagnosti, penalizado. — O que seria
de nossa aldeia sem seu débil mental?
Um rapaz mofino, olhos de um azul
desbotado, apareceu na porta, sem fôlego, cabelos colados à fronte
e desalinhados.
— Salve, Pavli! — gritou Manolakas. —
salve, priminho! Entre!
Mavrandoni voltou-se, olhou seu filho,
franziu as sobrancelhas.
— É meu filho isso? — disse consigo
mesmo. — esse aborto? Com quem Diabo ele parece? Dá-me vontade de
agarrá-lo pelo pescoço, levantá-lo e atirá-lo ao chão como um
polvo.
Zorba pisara em brasas. A viúva havia
inflamado o seu cérebro e não podia mais se aguentar entre aquelas
quatro paredes.
— Vamos embora, patrão, vamos embora,
me segredava ele a cada momento. Nós vamos estourar aqui!
Parecia-lhe que as nuvens se tinham
dissipado e que o sol havia reaparecido.
Virou-se para o dono do bar:
— Que faz aqui essa viúva? —
perguntou fingindo indiferença.
— Uma cabra — respondeu Kondomanolio.
Pousou um dedo sobre os lábio e apontou
com os olhos para Mavrandoni, que olhava fixamente para o chão.
— Uma cabra — repetiu ele. — não
falemos dela para não nos danarmos.
Mavrandoni levantou-se e enrolou o tubo
em volta do pescoço do narguilé.
— Com licença — disse ele. — vou
para casa. Venha, Pavli, venha comigo!
Levou o filho, e os dois desapareceram
logo sob chuva.
Manolakas se levantou e foi atrás.
Kondomanolio se instalou na cadeira de
Mavrandoni.
— Pobre Mavrandoni, ele vai morrer de
despeito — disse em voz baixa para que as outras mesas não
escutassem. — é uma grande infelicidade que entrou em casa dele.
Ontem ouvi, com minhas próprias orelhas, Pavli dizer a ele: “se
ela não for minha mulher eu me mato!” Mas ela, a miserável, não
que saber dele. “Pirralho” é como ela o chama.
— Vamos embora — repetiu Zorba, que
de tanto ouvir falar da viúva se inflamara cada vez mais. Os galos
se puseram a cantar, a chuva diminuiu um pouco.
— Vamos — disse eu me levantando.
Mimito pulou de seu canto e se esquivou
atrás de nós.
As pedras do calcamento luziam, as portas
encharcadas de água estavam enegrecidas, as velhinhas saíram com
seus cestos para apanhar caramujos.
Mimito se aproximou de mim e me tocou o
braço.
— Um cigarro, patrão — disse ele. —
isso lhe trará felicidade no amor.
Dei-lhe o cigarro. Estendeu sua mão
magra, queimada de sol.
— Dê-me fogo também!
Dei-lhe, tragou até o fundo dos pulmões
e soprou a fumaça pelas narinas, entrefechando as pálpebras.
— Feliz como um paxá! — murmurou
ele.
— Aonde vai você?
— Ao jardim da viúva. Ela disse que me
daria de comer se eu desse o aviso de sua cabrita.
Andávamos depressa. As nuvens se haviam
rasgado um pouco, o sol se mostrou. Toda a aldeia sorria, lavadinha.
— Ela lhe agrada, Mimito? — fez
Zorba, de água na boca.
Mimito engrolou.
— Por que não me agradaria? Não saí
também de um esgoto?
— De um esgoto? — disse eu surpreso.
— que quer dizer com isso?
— Bem, de uma barriga de mulher.
Fiquei apavorado. Só um Shakespeare,
pensei, poderia, em seus momentos mais inspirados, encontrar uma
expressão de um realismo tão cru para pintar o obscuro e repugnante
mistério do parto.
Olhei para Mimito. Seus olhos eram
grandes, vazios, um pouco abobalhados.
— Que faz você durante o dia, Mimito?
— Que posso fazer? Vivo como um paxá!
De manhã acordo, como um pedaço de pão, e depois vou trabalhar;
faço biscates, não importa onde, não importa o que. Dou recados,
transporto palha, apanho esterco e peco com meu caniço. Momo com a
mãe Lenio, a carpideira. Vocês devem conhecê-la, todos a conhecem.
Que nem que ela tivesse sido fotografada. De noite volto para casa,
tomo um prato de sopa e bebo um pouco de vinho. Se não tem vinho,
bebo água, a água do bom Deus, até me fartar, tanto que fico com a
barriga parecendo um tambor! Depois, boa noite!
— Você não vai se casar, Mimito?
— Eu? Não sou maluco! Que ideia é
essa, meu velho? Que eu vá procurar aborrecimentos? Uma mulher
precisa de sapatos! Onde é que vou encontrá-los? Veja, eu ando
descalço.
— Você não tem botas?
— Como não tenho! Tenho aquelas que a
mãe Lenio tirou de um cara que morreu no ano passado. Mas só uso na
Páscoa para ir à igreja e me fartar de olhar os padres. Depois
tiro, passo em volta do pescoço e volto para casa.
— Do que é que você mais gosta no
mundo, Mimito?
— Primeiro, de pão. Ah! Como eu gosto!
Quentinho, estalando, sobretudo se é pão preto! Depois, vinho.
Depois, sono.
— E as mulheres?
— Pff! Come, bebe e vai dormir, é o
que eu acho. O resto é amolação!
— E a viúva?
— Deixa-a para o diabo, é o melhor que
você pode fazer! Vade Retro Satanás!
Cuspiu três vezes e fez o sinal da cruz.
— Você sabe ler?
— Nem uma letra! Quando eu era pequeno,
me levaram à força para a escola, mas eu peguei logo tifo e virei
débil mental. Foi assim que eu escapei.
Zorba estava farto das minhas perguntas,
não pensava senão na viúva.
— patrão — disse-me ele pegando-me
pelo braço.
Virou-se para Mimito:
— Vá em frente — ordenou-lhe. —
Queremos conversar.
Baixou a voz, e tinha um ar emocionado.
— Patrão, disse ele, — é aqui que
quero ver você. Não desonre a “espécie masculina”! O Diabo, ou
o bom Deus, envia para você esse prato de príncipe; você tem
dentes, não o recuse! Pegue-o! Para que o criador nos deu mãos?
Para apanhar! Então, apanha! Mulheres já vi muitas na minha vida.
Mas essa viúva, ela faz cair campanários, a maldita!
— Não quero amolações — respondi
irritado.
Estava enervado por que em meu foro
íntimo tinha, eu também, desejado aquele corpo possante, que
passara diante de mim como uma fera no cio.
— Você não quer amolações? —
perguntou Zorba estupefato. — Então o que quer você?
Não respondi.
— A vida é uma amolação —
prossegui Zorba. — a morte não.
Viver, sabe o que quer dizer? Desfazer a
cintura e procurar encrenca.
Eu não dizia nada. Sabia que Zorba tinha
razão, sabia-o, mas faltava-me coragem. Minha vida tinha tomado o
caminho errado, e meu contato com os homens não era mais do que um
monólogo interior. Havia descido tão baixo que, se tivesse que
escolher entre ficar apaixonado por uma mulher e ler um bom livro, eu
preferiria o livro.
— Não faça cálculo, patrão —
prossegui Zorba. — deixe cair às cifras, destrua a porcaria da
balança, feche a loja, estou lhe dizendo. É agora que você vai
salvar ou perder a sua alma. Escute, patrão: tome dois ou três de
seus livros, mas livros de ouro, aqueles de papel não fazem
impressão, enrole-os em um lenço e mande-os à viúva pelo Mimito.
Ensine a ele o que deverá dizer: “O patrão da mina lhe saúda e
envia esse lencinho. É pouca coisa, manda dizer, mas muito amor.
Disse também para que não se preocupe com a cabrita; se ela perdeu,
não dê importância. Estamos aqui, não tenha medo! Ele a viu
passar diante do bar, e desde então só pensa em você.”
Aí está. Depois, da mesma noite, você
bate na porta dela. É preciso malhar o ferro enquanto está quente.
Você diz a ela que se perdeu, que a noite surpreendeu você, que
precisa de uma lanterna.
Ou, então, que se sentiu mal de repente
e precisa de um copo d’água. Ou, então, melhor ainda: você
compra uma cabrita, leva para ela e diz: “Aí tem, minha querida,
eis a cabrita que você perdeu e que eu achei!” Acredite em mim,
patrão, a viúva lhe dará a recompensa e você entrará — ah! Se
eu pudesse estar na garupa de seu cavalo — você entrará a cavalo
no paraíso. Outro paraíso além desse, meu velho, eu garanto, não
há!
Nikos Kazantzakis, in Zorba, o Grego
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