sábado, 24 de julho de 2021

Entrar a cavalo no paraíso

Na porta surgiu um rapazinho, descalço, descabelado, com grandes olhos espantados. É assim que os ícones representam São João Batista, os olhos desmesuradamente crescidos pela fome e pela reza.
Salve Mimito! — gritaram alguns rindo.
Toda aldeia tem o seu inocente, e se não o tem, fabrica um para passar o tempo. Mimito era o inocente da aldeia.
Amigos — gritou ele com sua voz trêmula e afeminada. — amigos, a viúva Surmelina perdeu sua cabrita. Para quem a encontrar, cinco litros de vinho como recompensa.
Vá embora! — gritou o velho Mavrandoni. — Vá embora!
Mimito, aterrorizado, se enrodilhou num canto, perto da porta.
Sente-se, Mimito! Vem beber um raki e esquentar-se — disse o tio Anagnosti, penalizado. — O que seria de nossa aldeia sem seu débil mental?
Um rapaz mofino, olhos de um azul desbotado, apareceu na porta, sem fôlego, cabelos colados à fronte e desalinhados.
Salve, Pavli! — gritou Manolakas. — salve, priminho! Entre!
Mavrandoni voltou-se, olhou seu filho, franziu as sobrancelhas.
É meu filho isso? — disse consigo mesmo. — esse aborto? Com quem Diabo ele parece? Dá-me vontade de agarrá-lo pelo pescoço, levantá-lo e atirá-lo ao chão como um polvo.
Zorba pisara em brasas. A viúva havia inflamado o seu cérebro e não podia mais se aguentar entre aquelas quatro paredes.
Vamos embora, patrão, vamos embora, me segredava ele a cada momento. Nós vamos estourar aqui!
Parecia-lhe que as nuvens se tinham dissipado e que o sol havia reaparecido.
Virou-se para o dono do bar:
Que faz aqui essa viúva? — perguntou fingindo indiferença.
Uma cabra — respondeu Kondomanolio.
Pousou um dedo sobre os lábio e apontou com os olhos para Mavrandoni, que olhava fixamente para o chão.
Uma cabra — repetiu ele. — não falemos dela para não nos danarmos.
Mavrandoni levantou-se e enrolou o tubo em volta do pescoço do narguilé.
Com licença — disse ele. — vou para casa. Venha, Pavli, venha comigo!
Levou o filho, e os dois desapareceram logo sob chuva.
Manolakas se levantou e foi atrás.
Kondomanolio se instalou na cadeira de Mavrandoni.
Pobre Mavrandoni, ele vai morrer de despeito — disse em voz baixa para que as outras mesas não escutassem. — é uma grande infelicidade que entrou em casa dele. Ontem ouvi, com minhas próprias orelhas, Pavli dizer a ele: “se ela não for minha mulher eu me mato!” Mas ela, a miserável, não que saber dele. “Pirralho” é como ela o chama.
Vamos embora — repetiu Zorba, que de tanto ouvir falar da viúva se inflamara cada vez mais. Os galos se puseram a cantar, a chuva diminuiu um pouco.
Vamos — disse eu me levantando.
Mimito pulou de seu canto e se esquivou atrás de nós.
As pedras do calcamento luziam, as portas encharcadas de água estavam enegrecidas, as velhinhas saíram com seus cestos para apanhar caramujos.
Mimito se aproximou de mim e me tocou o braço.
Um cigarro, patrão — disse ele. — isso lhe trará felicidade no amor.
Dei-lhe o cigarro. Estendeu sua mão magra, queimada de sol.
Dê-me fogo também!
Dei-lhe, tragou até o fundo dos pulmões e soprou a fumaça pelas narinas, entrefechando as pálpebras.
Feliz como um paxá! — murmurou ele.
Aonde vai você?
Ao jardim da viúva. Ela disse que me daria de comer se eu desse o aviso de sua cabrita.
Andávamos depressa. As nuvens se haviam rasgado um pouco, o sol se mostrou. Toda a aldeia sorria, lavadinha.
Ela lhe agrada, Mimito? — fez Zorba, de água na boca.
Mimito engrolou.
Por que não me agradaria? Não saí também de um esgoto?
De um esgoto? — disse eu surpreso. — que quer dizer com isso?
Bem, de uma barriga de mulher.
Fiquei apavorado. Só um Shakespeare, pensei, poderia, em seus momentos mais inspirados, encontrar uma expressão de um realismo tão cru para pintar o obscuro e repugnante mistério do parto.
Olhei para Mimito. Seus olhos eram grandes, vazios, um pouco abobalhados.
Que faz você durante o dia, Mimito?
Que posso fazer? Vivo como um paxá! De manhã acordo, como um pedaço de pão, e depois vou trabalhar; faço biscates, não importa onde, não importa o que. Dou recados, transporto palha, apanho esterco e peco com meu caniço. Momo com a mãe Lenio, a carpideira. Vocês devem conhecê-la, todos a conhecem. Que nem que ela tivesse sido fotografada. De noite volto para casa, tomo um prato de sopa e bebo um pouco de vinho. Se não tem vinho, bebo água, a água do bom Deus, até me fartar, tanto que fico com a barriga parecendo um tambor! Depois, boa noite!
Você não vai se casar, Mimito?
Eu? Não sou maluco! Que ideia é essa, meu velho? Que eu vá procurar aborrecimentos? Uma mulher precisa de sapatos! Onde é que vou encontrá-los? Veja, eu ando descalço.
Você não tem botas?
Como não tenho! Tenho aquelas que a mãe Lenio tirou de um cara que morreu no ano passado. Mas só uso na Páscoa para ir à igreja e me fartar de olhar os padres. Depois tiro, passo em volta do pescoço e volto para casa.
Do que é que você mais gosta no mundo, Mimito?
Primeiro, de pão. Ah! Como eu gosto! Quentinho, estalando, sobretudo se é pão preto! Depois, vinho. Depois, sono.
E as mulheres?
Pff! Come, bebe e vai dormir, é o que eu acho. O resto é amolação!
E a viúva?
Deixa-a para o diabo, é o melhor que você pode fazer! Vade Retro Satanás!
Cuspiu três vezes e fez o sinal da cruz.
Você sabe ler?
Nem uma letra! Quando eu era pequeno, me levaram à força para a escola, mas eu peguei logo tifo e virei débil mental. Foi assim que eu escapei.
Zorba estava farto das minhas perguntas, não pensava senão na viúva.
patrão — disse-me ele pegando-me pelo braço.
Virou-se para Mimito:
Vá em frente — ordenou-lhe. — Queremos conversar.
Baixou a voz, e tinha um ar emocionado.
Patrão, disse ele, — é aqui que quero ver você. Não desonre a “espécie masculina”! O Diabo, ou o bom Deus, envia para você esse prato de príncipe; você tem dentes, não o recuse! Pegue-o! Para que o criador nos deu mãos? Para apanhar! Então, apanha! Mulheres já vi muitas na minha vida. Mas essa viúva, ela faz cair campanários, a maldita!
Não quero amolações — respondi irritado.
Estava enervado por que em meu foro íntimo tinha, eu também, desejado aquele corpo possante, que passara diante de mim como uma fera no cio.
Você não quer amolações? — perguntou Zorba estupefato. — Então o que quer você?
Não respondi.
A vida é uma amolação — prossegui Zorba. — a morte não.
Viver, sabe o que quer dizer? Desfazer a cintura e procurar encrenca.
Eu não dizia nada. Sabia que Zorba tinha razão, sabia-o, mas faltava-me coragem. Minha vida tinha tomado o caminho errado, e meu contato com os homens não era mais do que um monólogo interior. Havia descido tão baixo que, se tivesse que escolher entre ficar apaixonado por uma mulher e ler um bom livro, eu preferiria o livro.
Não faça cálculo, patrão — prossegui Zorba. — deixe cair às cifras, destrua a porcaria da balança, feche a loja, estou lhe dizendo. É agora que você vai salvar ou perder a sua alma. Escute, patrão: tome dois ou três de seus livros, mas livros de ouro, aqueles de papel não fazem impressão, enrole-os em um lenço e mande-os à viúva pelo Mimito. Ensine a ele o que deverá dizer: “O patrão da mina lhe saúda e envia esse lencinho. É pouca coisa, manda dizer, mas muito amor. Disse também para que não se preocupe com a cabrita; se ela perdeu, não dê importância. Estamos aqui, não tenha medo! Ele a viu passar diante do bar, e desde então só pensa em você.”
Aí está. Depois, da mesma noite, você bate na porta dela. É preciso malhar o ferro enquanto está quente. Você diz a ela que se perdeu, que a noite surpreendeu você, que precisa de uma lanterna.
Ou, então, que se sentiu mal de repente e precisa de um copo d’água. Ou, então, melhor ainda: você compra uma cabrita, leva para ela e diz: “Aí tem, minha querida, eis a cabrita que você perdeu e que eu achei!” Acredite em mim, patrão, a viúva lhe dará a recompensa e você entrará — ah! Se eu pudesse estar na garupa de seu cavalo — você entrará a cavalo no paraíso. Outro paraíso além desse, meu velho, eu garanto, não há!

Nikos Kazantzakis, in Zorba, o Grego

Nenhum comentário:

Postar um comentário