sexta-feira, 9 de julho de 2021

Adeus à roça

No Cancioneiro da Inconfidência, Cecília Meireles descreve a desgraça do negro na cata do ouro. Vou transcrever um pedacinho:

Já se ouve cantar o negro,
Que saudade pela serra!
Os corpos naquelas águas,
As almas por longe terra.
Em cada vida de escravo.
Que surda, perdida guerra!

Faço uma paródia para se aplicar ao meu pai:

O corpo naqueles campos,
A alma por longes terras...

Meu pai perdera a guerra. Testa coberta de suor, foice na mão, ele não queria travar uma batalha com a natureza. Ele não nascera para a agricultura. Não nascera para a solidão dos pastos. Sua alma viajava por outros lugares. O apito das locomotivas, o cheiro do carvão, as viagens, o sacolejar do trem cortando os campos, as estações ferroviárias, os hotéis, a caderneta quilométrica, e ele fazendo a praça, espalhando palavras alegres para convencer os fregueses, o retorno à casa depois do triunfo comercial de cada viagem. Sonhava outra vida.
Essa outra vida começava com as locomotivas. Sonhava mudar-se para Juiz de Fora e dizia: “Em Juiz de Fora as rodas das locomotivas são da altura do seu irmão Ivan...” . Eu me assombrava ao ouvir falar dessas coisas que eu nunca vira. Ele abria então a Encyclopaedia no volume XI, “K — Macchabeus”, e me mostrava as fotografias. “Quem inventou a locomotiva foi um inglês chamado George Stephenson”, ele dizia.
Até que chegou um dia quando ele disse: “Vamos nos mudar daqui! Vamos nos mudar para Lambari...” . Não era Juiz de Fora. Para Juiz de Fora o pulo seria muito grande. Era uma cidadezinha pequena, estação de águas, que tinha trem. Eu não me lembro direito do dia da mudança. Lembro-me que me acordaram muito cedo. E eu me espantei ao ver o céu coberto de estrelas. Para mim, menino, céu coberto de estrelas acontecia à noite, quando se ia para a cama. Que estranho! Eu estava me levantando, era manhã, e o céu estava coberto de estrelas!
A mudança foi simples. Não tínhamos móveis. Tudo o que tínhamos cabia numas poucas canastras. Mais o piano, naturalmente. A Encyclopaedia. E a Biblioteca Internacional de Obras Célebres. Umas poucas panelas. Talheres. Louças. Roupas. E foi assim, com o céu coberto de estrelas e o horizonte se avermelhando que eu deixei o mundo onde meus companheiros eram os cavalos, as vacas, as galinhas, os riachinhos e o menino da mata que conversava comigo e me mudei para um mundo desconhecido onde corriam trens de ferro movidos a fogo e vapor…

Rubem Alves, in O velho que acordou menino

Nenhum comentário:

Postar um comentário