Se os vitorianos se ofenderam com a
teoria da evolução de Darwin, que diz que somos descendentes de
primatas, imagina se soubessem que nosso primeiro ancestral era muito
mais primitivo do que isso, uma mera criatura unicelular, nada mais
do que um micróbio. Sim, temos uma Eva microbial. Hoje, sabemos que
todas as criaturas vivas dividem o mesmo ancestral, chamado LUCA, do
inglês Last Universal Common Ancestor, último ancestral comum
universal. Difícil imaginar uma visão mais unificada da vida: todas
as criaturas vivas derivam diretamente de um ser unicelular, a raiz
da complexa árvore da vida.
Se pudéssemos passar o filme da vida ao
contrário, mergulhando gradativamente no passado distante,
eventualmente encontraríamos esse ser peculiar na linha de partida,
o protagonista individual de um drama que vem se desenrolando por
aproximadamente 4 bilhões de anos. Muito possivelmente, existiram
outras criaturas vivas antes do LUCA. Não sabemos exatamente quem
eram ou quando existiram. Mas biólogos especializados no estudo de
formas de vida primitiva conseguiram mapear a evolução de criaturas
ancestrais em detalhe, um feito sensacional dadas as dificuldades de
se encontrarem fósseis de criaturas que viveram no passado muito
distante. No caso da vida muito primitiva, as pistas não vêm de
ossos ou de fósseis impressos em rochas.
A evidência vem do DNA, o material
genético encontrado nas células, responsável pela reprodução.
Com isso, cientistas foram capazes de identificar o LUCA como um ser
unicelular do tipo procariota (um micróbio com material genético
sem uma membrana protetora), que viveu em torno de 3 bilhões de anos
atrás. O organismo deve ter sido incrivelmente resistente, capaz de
sobreviver em ambientes extremamente austeros. A árvore da vida é
extremamente complexa. Se você examinar uma ilustração recente,
publicada em um artigo do New York Times, descobrirá duas coisas
surpreendentes: primeiro, que humanos e todos os outros animais são
a minoria absoluta, um galhinho na parte direita inferior, parte dos
eucariotas, os organismos cujas células têm o material genético
protegido por uma membrana. (Os eucariotas incluem os animais, as
plantas, os fungos e os protozoários.)
Segundo, que a maioria absoluta das
criaturas vivas são bactérias. Perto dos eucariotas, você encontra
as arqueias (do inglês, archaea), seres unicelulares capazes de
sobreviver em ambientes extremos, como perto de ventas submarinas que
jorram água fervendo, ou em pântanos praticamente sem oxigênio. A
evidência acumulada até agora indica que o LUCA foi um tipo de
arqueia. O biólogo evolucionário William Martin, da Universidade
Heinrich Heine em Düsseldorf, na Alemanha, tentou achar sinais do
LUCA escondidos nos genes de bactérias e arqueias. A tarefa não é
nada fácil, pois organismos podem trocar genes ao evoluírem,
tornando difícil distinguir genes que vieram de uma linhagem antiga
daqueles que foram obtidos mais recentemente. (Pense numa família
que tem um saco de dinheiro que vai passando de geração em geração,
e que, de vez em quando, recebe uma nota nova.)
Para identificar os genes antigos, o
cientista buscou genes que ocorrem em pelo menos dois tipos de
bactérias e arqueias modernas. Com isso, poderia identificar os
genes que foram de fato herdados de ancestrais distantes (notas
velhas) e não adquiridos numa troca recente (nota nova). Depois de
estudar 2 mil micróbios modernos, cujos genes foram sequenciados nas
últimas duas décadas, o time de Martin descobriu 355 famílias de
genes que aparecem frequentemente, sugerindo que têm uma origem
comum. Analisando os genes em detalhe, Martin e seus colaboradores
concluíram que o LUCA era uma criatura anaeróbica (que vive sem
oxigênio) e termofílica (que gosta de ambientes quentes).
Em artigo da revista Nature, escreveram,
LUCA habitava um ambiente geoquímico ativo, rico em gás de
hidrogênio, dióxido de carbono e ferro. Os resultados são
consistentes com a teoria de que os primeiros seres vivos eram
autotróficos (capazes de se alimentar de compostos químicos
inorgânicos) [...] habitando ventas hidrotermais. De acordo com
esses resultados, o LUCA era uma criatura unicelular simples, que
viveu onde a água do mar encontrava o magma que jorrava do interior
da Terra, em ventas hidrotermais. Alguns cientistas criticaram os
resultados de Martin, argumentando que a vida veio da terra firme e
que apenas mais tarde migrou para ambientes submarinos para se
proteger de condições austeras na superfície, como, por exemplo,
impactos de meteoros, que eram muito frequentes até 3,9 bilhões de
anos atrás.
Para resolver a disputa, seria necessário
encontrar vestígios desse tipo de vida terrestre, uma tarefa muito
difícil dada a idade das rochas e as transformações que passaram
no decorrer de bilhões de anos. Sobra pouco, ou nada, da memória do
passado distante. Mas ciência avança assim, de disputa em disputa,
até que evidência conclusiva é acumulada a ponto de convencer a
maioria dos membros da comunidade. No momento, a evidência que temos
sugere que nossa Eva ancestral era um organismo unicelular
extremamente resistente, que gostava de nadar em água muito quente e
de comer compostos simples. Não poderíamos esperar menos do
incrível organismo que evoluiu para se tornar todas as outras
criaturas que já existiram. Isso sim é legado genético!
Marcelo Gleiser, in O caldeirão azul
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