terça-feira, 6 de julho de 2021

A unidade da vida

Se os vitorianos se ofenderam com a teoria da evolução de Darwin, que diz que somos descendentes de primatas, imagina se soubessem que nosso primeiro ancestral era muito mais primitivo do que isso, uma mera criatura unicelular, nada mais do que um micróbio. Sim, temos uma Eva microbial. Hoje, sabemos que todas as criaturas vivas dividem o mesmo ancestral, chamado LUCA, do inglês Last Universal Common Ancestor, último ancestral comum universal. Difícil imaginar uma visão mais unificada da vida: todas as criaturas vivas derivam diretamente de um ser unicelular, a raiz da complexa árvore da vida.
Se pudéssemos passar o filme da vida ao contrário, mergulhando gradativamente no passado distante, eventualmente encontraríamos esse ser peculiar na linha de partida, o protagonista individual de um drama que vem se desenrolando por aproximadamente 4 bilhões de anos. Muito possivelmente, existiram outras criaturas vivas antes do LUCA. Não sabemos exatamente quem eram ou quando existiram. Mas biólogos especializados no estudo de formas de vida primitiva conseguiram mapear a evolução de criaturas ancestrais em detalhe, um feito sensacional dadas as dificuldades de se encontrarem fósseis de criaturas que viveram no passado muito distante. No caso da vida muito primitiva, as pistas não vêm de ossos ou de fósseis impressos em rochas.
A evidência vem do DNA, o material genético encontrado nas células, responsável pela reprodução. Com isso, cientistas foram capazes de identificar o LUCA como um ser unicelular do tipo procariota (um micróbio com material genético sem uma membrana protetora), que viveu em torno de 3 bilhões de anos atrás. O organismo deve ter sido incrivelmente resistente, capaz de sobreviver em ambientes extremamente austeros. A árvore da vida é extremamente complexa. Se você examinar uma ilustração recente, publicada em um artigo do New York Times, descobrirá duas coisas surpreendentes: primeiro, que humanos e todos os outros animais são a minoria absoluta, um galhinho na parte direita inferior, parte dos eucariotas, os organismos cujas células têm o material genético protegido por uma membrana. (Os eucariotas incluem os animais, as plantas, os fungos e os protozoários.)
Segundo, que a maioria absoluta das criaturas vivas são bactérias. Perto dos eucariotas, você encontra as arqueias (do inglês, archaea), seres unicelulares capazes de sobreviver em ambientes extremos, como perto de ventas submarinas que jorram água fervendo, ou em pântanos praticamente sem oxigênio. A evidência acumulada até agora indica que o LUCA foi um tipo de arqueia. O biólogo evolucionário William Martin, da Universidade Heinrich Heine em Düsseldorf, na Alemanha, tentou achar sinais do LUCA escondidos nos genes de bactérias e arqueias. A tarefa não é nada fácil, pois organismos podem trocar genes ao evoluírem, tornando difícil distinguir genes que vieram de uma linhagem antiga daqueles que foram obtidos mais recentemente. (Pense numa família que tem um saco de dinheiro que vai passando de geração em geração, e que, de vez em quando, recebe uma nota nova.)
Para identificar os genes antigos, o cientista buscou genes que ocorrem em pelo menos dois tipos de bactérias e arqueias modernas. Com isso, poderia identificar os genes que foram de fato herdados de ancestrais distantes (notas velhas) e não adquiridos numa troca recente (nota nova). Depois de estudar 2 mil micróbios modernos, cujos genes foram sequenciados nas últimas duas décadas, o time de Martin descobriu 355 famílias de genes que aparecem frequentemente, sugerindo que têm uma origem comum. Analisando os genes em detalhe, Martin e seus colaboradores concluíram que o LUCA era uma criatura anaeróbica (que vive sem oxigênio) e termofílica (que gosta de ambientes quentes).
Em artigo da revista Nature, escreveram, LUCA habitava um ambiente geoquímico ativo, rico em gás de hidrogênio, dióxido de carbono e ferro. Os resultados são consistentes com a teoria de que os primeiros seres vivos eram autotróficos (capazes de se alimentar de compostos químicos inorgânicos) [...] habitando ventas hidrotermais. De acordo com esses resultados, o LUCA era uma criatura unicelular simples, que viveu onde a água do mar encontrava o magma que jorrava do interior da Terra, em ventas hidrotermais. Alguns cientistas criticaram os resultados de Martin, argumentando que a vida veio da terra firme e que apenas mais tarde migrou para ambientes submarinos para se proteger de condições austeras na superfície, como, por exemplo, impactos de meteoros, que eram muito frequentes até 3,9 bilhões de anos atrás.
Para resolver a disputa, seria necessário encontrar vestígios desse tipo de vida terrestre, uma tarefa muito difícil dada a idade das rochas e as transformações que passaram no decorrer de bilhões de anos. Sobra pouco, ou nada, da memória do passado distante. Mas ciência avança assim, de disputa em disputa, até que evidência conclusiva é acumulada a ponto de convencer a maioria dos membros da comunidade. No momento, a evidência que temos sugere que nossa Eva ancestral era um organismo unicelular extremamente resistente, que gostava de nadar em água muito quente e de comer compostos simples. Não poderíamos esperar menos do incrível organismo que evoluiu para se tornar todas as outras criaturas que já existiram. Isso sim é legado genético!

Marcelo Gleiser, in O caldeirão azul

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