Deixei a roça sem saudades. A saudade
vem com a velhice. Não sofri com a mudança. Como disse Caeiro, “as
crianças são de novo nascidas a cada momento para a eterna novidade
do mundo”. Tudo era novidade. Não me importava que a casa para
onde nos mudamos fosse do tamanho de uma caixa de fósforos. Eu não
sabia que ela era do tamanho de uma caixa de fósforos. O que me
importava era o fato de minha casa se encontrar atrás de um Castelo
Encantado. Lá estava ele, no alto da colina, enorme, fechado,
misterioso. Dos pátios vazios que o circundavam, olhando-se para
baixo se via um lago azul imenso, coisa que eu desconhecia porque na
roça eu só conhecera riachinhos e lagoinhas. E havia marrequinhos a
nadar...
Depois de grande pensei que não havia
razões objetivas para nos termos mudado para Lambari. Meu pai era
agora viajante, precisava de trens, e o mais lógico teria sido Três
Corações, entroncamento ferroviário. Por que ele escolheu Lambari?
Acho que foi por causa do Castelo Encantado... Ele me levou a visitar
o Castelo por dentro, graças à amizade que fizera com o guarda.
Eram salas imensas, empoeiradas, silenciosas, escuras, os móveis
cobertos com lençóis, lustres de cristal, mesas de veludos
vermelhos e verdes. Tudo parecia dormir. Eu estava no Castelo Bela
Adormecida...
Mais tarde me explicaram, e com a
explicação o Castelo deixou de ser Castelo. Foi-se o mistério.
Virou um cassino. O assombroso desse cassino é que ele teve uma
noite de glória, uma única noite de glória. Foi fechado por ordens
superiores no dia seguinte ao de sua inauguração, sem explicações,
e nunca mais foi aberto.
O tempo realizou o seu trabalho de
desencantamento. Hoje nele funcionam repartições da prefeitura. As
riquezas antigas desapareceram. Parece que foram saqueadas. Agora ele
está reduzido à banalidade de um prédio onde funcionam repartições
burocráticas. Visitei-o sob sua nova forma. O lago é o mesmo. Os
marrecos continuam a nadar. Observei os funcionários. Eles não
sabem que estão andando num espaço onde, em tempos esquecidos,
viveram reis e donzelas. Agora, na lanchonete, se serve um cafezinho
com pães de queijo...
Cheguei e percebi que acabara de entrar
num mundo diferente daquele em que eu vivera. Mas o desconhecido não
me amedrontava. Ao contrário. Dava-me uma alegre sensação de
liberdade. Lá não havia nem onças nem meninos abandonados dentro
da mata. Tive uma cadela que, quando novinha, de repente, sem nenhuma
razão especial, se punha a correr e a saltar como doida, em
círculos, pela própria alegria de viver. E eu me vejo, menino de
seis anos, como a minha cadelinha, correndo de alegria, sem nenhuma
razão, entrando pela porta da frente da casa, atravessando alpendre,
a sala, saindo pela porta da cozinha, voltando para a frente da casa,
para fazer tudo de novo, em círculos...
As evidências da novidade do mundo eram
claras. A primeira era a maravilha das lâmpadas elétricas que
pendiam do teto ao fim de um fio coberto de cocôs de moscas. Mas que
são cocôs de moscas diante do assombro? Bastava girar uma orelha no
bocal para que a lâmpada acendesse! Adeus, lamparinas! Adeus, cheiro
de querosene! Adeus, fuligem negra! Na roça o mundo e a vida eram
misteriosos. Mas não os objetos. Bastava olhar para compreender como
eram feitos e como funcionavam. Uma lamparina, nada mais simples: um
recipiente de vidro ou lata, querosene, pavio, fogo, luz. Era fácil
fazer uma lamparina. Mas a lâmpada elétrica pertencia a um novo
mundo, onde os objetos eram opacos. Como são feitas as lâmpadas?
Como acontece o milagre da luz? Que coisa é essa chamada
eletricidade que ninguém vê, que faz a lâmpada acender e que dá
choque quando se toca nela, invisível?
A outra evidência era a privada. Bastava
puxar uma cordinha para que acontecesse uma descarga de água que
fazia desaparecer os cocôs...
Não tínhamos móveis. Mas o meu pai
dava um jeito. Foi a um armazém, arranjou um caixote grande de
madeira, trouxe-o para casa, tirou uma porta das dobradiças, pregou
a porta sobre o caixote — e eis a nossa mesa! Infelizmente a mesa
apresentava um problema devido à sua construção: ela funcionava
como uma gangorra. Quem estivesse assentado à cabeceira, se se
apoiasse sobre a mesa, corria o risco de receber uma terrina de
feijão na testa. Guarda-roupas, nem pensar. Meu pai não se
perturbou. Juntou uns cabos de vassoura abandonados, fez buracos nos
ângulos das paredes e neles encaixou os cabos de vassoura que,
assim, se transformaram nos nossos guarda-roupas, onde pendurávamos
os cabides. Muito pouco, mas o suficiente para as poucas roupas que
tínhamos.
Um dia o pai, viajante, chegou de uma de
suas viagens com uma surpresa alegre. Como já disse, ele vendia de
tudo. E também caixas de doces de frutas em pasta: goiabada,
pessegada, marmelada, laranjada. Pois uma caixa de doce de laranja de
cinco quilos ficara encalhada e assim ele a trazia como presente. Foi
uma felicidade! Comeríamos sobremesa! No primeiro dia foi uma festa.
Também no segundo, no terceiro e no quarto. Acontece, porém, que
cinco quilos de doce de laranja é muito... Por mais que comêssemos,
a laranjada não diminuía de tamanho. Transcorridas duas semanas, já
não podíamos ver a caixa, que voltava sempre para a mesa. E, sendo
pobres, não podíamos nos entregar ao luxo de jogá-la fora. A
laranjada, de alegria se transformou em tortura. Levou muito tempo
para que terminasse. Terminou. Mas o trauma ficou.
Rubem Alves, in O velho que acordou menino
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