sexta-feira, 23 de julho de 2021

A caixa de laranjada

Deixei a roça sem saudades. A saudade vem com a velhice. Não sofri com a mudança. Como disse Caeiro, “as crianças são de novo nascidas a cada momento para a eterna novidade do mundo”. Tudo era novidade. Não me importava que a casa para onde nos mudamos fosse do tamanho de uma caixa de fósforos. Eu não sabia que ela era do tamanho de uma caixa de fósforos. O que me importava era o fato de minha casa se encontrar atrás de um Castelo Encantado. Lá estava ele, no alto da colina, enorme, fechado, misterioso. Dos pátios vazios que o circundavam, olhando-se para baixo se via um lago azul imenso, coisa que eu desconhecia porque na roça eu só conhecera riachinhos e lagoinhas. E havia marrequinhos a nadar...
Depois de grande pensei que não havia razões objetivas para nos termos mudado para Lambari. Meu pai era agora viajante, precisava de trens, e o mais lógico teria sido Três Corações, entroncamento ferroviário. Por que ele escolheu Lambari? Acho que foi por causa do Castelo Encantado... Ele me levou a visitar o Castelo por dentro, graças à amizade que fizera com o guarda. Eram salas imensas, empoeiradas, silenciosas, escuras, os móveis cobertos com lençóis, lustres de cristal, mesas de veludos vermelhos e verdes. Tudo parecia dormir. Eu estava no Castelo Bela Adormecida...
Mais tarde me explicaram, e com a explicação o Castelo deixou de ser Castelo. Foi-se o mistério. Virou um cassino. O assombroso desse cassino é que ele teve uma noite de glória, uma única noite de glória. Foi fechado por ordens superiores no dia seguinte ao de sua inauguração, sem explicações, e nunca mais foi aberto.
O tempo realizou o seu trabalho de desencantamento. Hoje nele funcionam repartições da prefeitura. As riquezas antigas desapareceram. Parece que foram saqueadas. Agora ele está reduzido à banalidade de um prédio onde funcionam repartições burocráticas. Visitei-o sob sua nova forma. O lago é o mesmo. Os marrecos continuam a nadar. Observei os funcionários. Eles não sabem que estão andando num espaço onde, em tempos esquecidos, viveram reis e donzelas. Agora, na lanchonete, se serve um cafezinho com pães de queijo...
Cheguei e percebi que acabara de entrar num mundo diferente daquele em que eu vivera. Mas o desconhecido não me amedrontava. Ao contrário. Dava-me uma alegre sensação de liberdade. Lá não havia nem onças nem meninos abandonados dentro da mata. Tive uma cadela que, quando novinha, de repente, sem nenhuma razão especial, se punha a correr e a saltar como doida, em círculos, pela própria alegria de viver. E eu me vejo, menino de seis anos, como a minha cadelinha, correndo de alegria, sem nenhuma razão, entrando pela porta da frente da casa, atravessando alpendre, a sala, saindo pela porta da cozinha, voltando para a frente da casa, para fazer tudo de novo, em círculos...
As evidências da novidade do mundo eram claras. A primeira era a maravilha das lâmpadas elétricas que pendiam do teto ao fim de um fio coberto de cocôs de moscas. Mas que são cocôs de moscas diante do assombro? Bastava girar uma orelha no bocal para que a lâmpada acendesse! Adeus, lamparinas! Adeus, cheiro de querosene! Adeus, fuligem negra! Na roça o mundo e a vida eram misteriosos. Mas não os objetos. Bastava olhar para compreender como eram feitos e como funcionavam. Uma lamparina, nada mais simples: um recipiente de vidro ou lata, querosene, pavio, fogo, luz. Era fácil fazer uma lamparina. Mas a lâmpada elétrica pertencia a um novo mundo, onde os objetos eram opacos. Como são feitas as lâmpadas? Como acontece o milagre da luz? Que coisa é essa chamada eletricidade que ninguém vê, que faz a lâmpada acender e que dá choque quando se toca nela, invisível?
A outra evidência era a privada. Bastava puxar uma cordinha para que acontecesse uma descarga de água que fazia desaparecer os cocôs...
Não tínhamos móveis. Mas o meu pai dava um jeito. Foi a um armazém, arranjou um caixote grande de madeira, trouxe-o para casa, tirou uma porta das dobradiças, pregou a porta sobre o caixote — e eis a nossa mesa! Infelizmente a mesa apresentava um problema devido à sua construção: ela funcionava como uma gangorra. Quem estivesse assentado à cabeceira, se se apoiasse sobre a mesa, corria o risco de receber uma terrina de feijão na testa. Guarda-roupas, nem pensar. Meu pai não se perturbou. Juntou uns cabos de vassoura abandonados, fez buracos nos ângulos das paredes e neles encaixou os cabos de vassoura que, assim, se transformaram nos nossos guarda-roupas, onde pendurávamos os cabides. Muito pouco, mas o suficiente para as poucas roupas que tínhamos.
Um dia o pai, viajante, chegou de uma de suas viagens com uma surpresa alegre. Como já disse, ele vendia de tudo. E também caixas de doces de frutas em pasta: goiabada, pessegada, marmelada, laranjada. Pois uma caixa de doce de laranja de cinco quilos ficara encalhada e assim ele a trazia como presente. Foi uma felicidade! Comeríamos sobremesa! No primeiro dia foi uma festa. Também no segundo, no terceiro e no quarto. Acontece, porém, que cinco quilos de doce de laranja é muito... Por mais que comêssemos, a laranjada não diminuía de tamanho. Transcorridas duas semanas, já não podíamos ver a caixa, que voltava sempre para a mesa. E, sendo pobres, não podíamos nos entregar ao luxo de jogá-la fora. A laranjada, de alegria se transformou em tortura. Levou muito tempo para que terminasse. Terminou. Mas o trauma ficou.

Rubem Alves, in O velho que acordou menino

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