Quanto
mais criança via nascer, mais sentia como se meu corpo vibrasse, em
movimento pedindo para parir, como a terra úmida parece pedir para
ser semeada; e se não fosse semeada, a natureza faz ela mesma seu
cultivo, dando a capoeira, o maracujá-da-caatinga e folhas de toda
sorte para curar os males do corpo e do espírito.
Depois
do fim da estiagem, nasceram crianças como orelha-de-pau em troncos
apodrecidos nos charcos que se tornaram a vazante. Passei a
acompanhar Salu quase toda semana para ajudar as mulheres no parto.
Crispina e Crispiniana engravidaram de novo, ao mesmo tempo, e
ninguém perguntava mais quem era o pai do filho da segunda. A
notícia que chegava à nossa casa era que viviam às turras. O
segundo filho de Crispina vingou, o que para minha mãe foi de grande
alívio. Temia que nascesse outro anjo e fosse desconsiderada como
parteira. Seguia de casa em casa para pegar criança, com as forças
do Velho Nagô, lembrava sempre, e se regozijava com o “Deus lhe
pague”. Não vi minha mãe se queixar da quantidade de mulheres
parindo, do trabalho que não era pouco, do preparo do ferrado para
evitar qualquer mal depois da parição, dos restos a serem
enterrados no quintal, do cuidado com o corte do cordão do umbigo. O
som da colher quente queimando o umbigo do recém-nascido e o cheiro
de banha derretida que enchia o ambiente ficaram gravados em minha
memória. Era o cheiro daquele ano movimentado de tanto trabalho, mas
tido como de grande benção, diferente dos anos de seca, quando
enterramos anjinhos na Viração.
Os
dias se passaram como o vento. Nem Bibiana nem Severo vieram no fim
do ano, como prometido. Nem mesmo um bilhete chegou para dizer se a
criança havia nascido, se era menino ou menina, se se chamava Severo
ou José, ou Salustiana ou Hermelina. Ou se chamava Maria ou Flora,
como chamávamos as bonecas de sabugo de milho de nossa infância.
Minha mãe se demonstrava aflita, sensível a qualquer anúncio de
chegada de um caixeiro ou vendedor de mantas e panelas, que poderia
trazer um novo bilhete com notícias de Bibiana. Eu sonhei qualquer
dia, porque me esqueci depois, que minha irmã dava à luz e que quem
fazia o parto era meu pai, muito mais velho e encurvado pelos anos.
No sonho, eu cantava as cantigas das lavadeiras da beira do rio e a
criança, que deveria nascer chorando, vinha ao mundo sorrindo, como
nunca havia visto.
Em
dezembro, caiu um aguaceiro com trovoada, bem no dia da festa de
Santa Bárbara. Dona Tonha trouxe as vestes guardadas e engomadas do
ano anterior para o jarê, e meu pai, quanto mais velho ficava, mais
envergonhado parecia, por ter que se vestir com saia e adè. Nem meu
pai pôde prever em sua encantaria que as chuvas arrasariam um ano de
trabalho duro nas roças de vazante. Mal havíamos saído da seca e
passamos a sofrer com os prejuízos da cheia. Algumas casas,
precárias, praticamente ruíram com a força da água e do vento.
“Se
a água não levar, a gente come”, meu pai me disse entre uma
capina e outra no roçado. A água levou tudo. As roças viraram
charcos e lagoas, e, ao invés da mandioca e da batata-doce, que
apodreceram debaixo de tanta água, pegávamos cumbás, molés,
cascudos e jundiás onde antes era sequeiro. Boa parte das famílias
havia armazenado farinha de mandioca fabricada ao longo dos últimos
meses. O povo de Água Negra passou a seguir para a cidade antes de o
sol raiar, sem conhecimento do gerente, se embrenhando pelas matas
para não serem descobertos, na intenção de vender o peixe e
comprar mantimentos. Pescavam dia e noite, e só não conseguiam
pescar em noite de lua nova porque os peixes ficavam com os dentes
moles e não seguravam as iscas. Para despistar Sutério, os
trabalhadores deixavam vara e anzol escondidos na mata da beira da
lagoa ou amarrados em galhos de árvores. Naquele verão me embrenhei
muitas vezes na lama com Domingas e minha mãe para apanhar peixe.
Zezé e meu pai continuavam a trabalhar na roça do alto, mais
distante da vazante, aproveitando a chuva que se tornou constante
naqueles primeiros meses. Como havíamos cultivado nossos quintais
desde o fim do longo período de estiagem, e muitas famílias fizeram
o mesmo, abençoávamos a chuva e não lamentávamos, mesmo ao ver
meses de trabalho debaixo d’água. Era doído ver a lavoura
encharcada, mas tínhamos força e água para labutar com a roça de
novo.
Naquele
ano, continuei a ver Tobias. Eu o percebia me observando, me cercando
com gestos corteses, mas era cada vez menor a frequência com que
isso ocorria. Parecia dividir seu interesse por outras moças da
fazenda. Ressentida, passei a ignorá-lo nos caminhos ou nas noites
de jarê. Por um tempo, cheguei a achar que fazia aquela cena de
dengo para me atiçar a atenção. E de fato, sentia vontade de
desviar meu olhar para saber até onde iria com a bebedeira a que se
entregava nessas noites. Mas continha o querer, me lembrava de minha
condenação ao silêncio, da minha timidez rude, arisca, que me
fazia selvagem e afastava as pessoas.
Desviei
muitas vezes meu olhar para evitar os olhos dele. Mas quando percebia
sua distração em outras moças e pessoas, ou sua dedicação no
serviço, o observava ao longe e sentia o interesse crescer. Meu
corpo se descontrolava como um potro, suava, exalava odores, tremia,
fazia movimentos que levavam o coração à boca. Me lembrava da
chegada de Severo ainda menino à Água Negra. Mas não havia toda
essa potência no desejo, era algo bom como asas frágeis se movendo
em meu corpo. Agora eu era uma fruta amadurecida convidando os
pássaros a me bicarem, como os chupins que espantávamos dos
arrozais até pouco tempo atrás.
Em
certa manhã, meu pai se dirigiu a mim, à mesa que exalava o cheiro
do café fresco que Salu coava. Disse que Tobias o havia procurado
com respeito, porque queria me levar pra morar com ele. Falou que o
homem se queixava da solidão na tapera da margem do Santo Antônio.
Que tinha muita estima e consideração por mim. Por um minuto,
imaginei meu pai alertando o homem do meu defeito, dizendo que a
filha era deficiente, que tinha uma natureza forte, rude como uma
onça, mas que tinha um bom coração. Imaginei meu pai lhe fazendo
prometer que cuidaria de mim, que eu não conheceria sofrimento.
Imaginei aquela conversa que nunca soube se existiu, porque nada foi
dito sobre minha condição. Disse que não precisava responder logo,
poderia pensar, e que só aceitasse se me sentisse pronta para ir,
porque ele não queria conceder a mão da filha a qualquer um. Que só
o fazia porque conheceu Tobias durante aquele ano e o considerava
trabalhador e de respeito.
Não
sei por que naquela hora me veio a imagem de Donana à cabeça. Minha
avó surgiu em meus pensamentos com sua brabeza, com seu chapéu
grande, com seu punhal com cabo de marfim, com as histórias que me
contavam sobre ela, com seus três casamentos e o mistério da vida
de tia Carmelita, de que ninguém tinha notícias. Sobre que resposta
daria se fosse ela a cortejada naquelas circunstâncias. Se sim ou se
não, escreveria os rumos que daria à minha vida num pedaço de
papel pardo guardado debaixo do colchão.
Itamar Vieira Junior, in Torto Arado
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