sexta-feira, 4 de junho de 2021

Torto Arado / 4

Quanto mais criança via nascer, mais sentia como se meu corpo vibrasse, em movimento pedindo para parir, como a terra úmida parece pedir para ser semeada; e se não fosse semeada, a natureza faz ela mesma seu cultivo, dando a capoeira, o maracujá-da-caatinga e folhas de toda sorte para curar os males do corpo e do espírito.
Depois do fim da estiagem, nasceram crianças como orelha-de-pau em troncos apodrecidos nos charcos que se tornaram a vazante. Passei a acompanhar Salu quase toda semana para ajudar as mulheres no parto. Crispina e Crispiniana engravidaram de novo, ao mesmo tempo, e ninguém perguntava mais quem era o pai do filho da segunda. A notícia que chegava à nossa casa era que viviam às turras. O segundo filho de Crispina vingou, o que para minha mãe foi de grande alívio. Temia que nascesse outro anjo e fosse desconsiderada como parteira. Seguia de casa em casa para pegar criança, com as forças do Velho Nagô, lembrava sempre, e se regozijava com o “Deus lhe pague”. Não vi minha mãe se queixar da quantidade de mulheres parindo, do trabalho que não era pouco, do preparo do ferrado para evitar qualquer mal depois da parição, dos restos a serem enterrados no quintal, do cuidado com o corte do cordão do umbigo. O som da colher quente queimando o umbigo do recém-nascido e o cheiro de banha derretida que enchia o ambiente ficaram gravados em minha memória. Era o cheiro daquele ano movimentado de tanto trabalho, mas tido como de grande benção, diferente dos anos de seca, quando enterramos anjinhos na Viração.
Os dias se passaram como o vento. Nem Bibiana nem Severo vieram no fim do ano, como prometido. Nem mesmo um bilhete chegou para dizer se a criança havia nascido, se era menino ou menina, se se chamava Severo ou José, ou Salustiana ou Hermelina. Ou se chamava Maria ou Flora, como chamávamos as bonecas de sabugo de milho de nossa infância. Minha mãe se demonstrava aflita, sensível a qualquer anúncio de chegada de um caixeiro ou vendedor de mantas e panelas, que poderia trazer um novo bilhete com notícias de Bibiana. Eu sonhei qualquer dia, porque me esqueci depois, que minha irmã dava à luz e que quem fazia o parto era meu pai, muito mais velho e encurvado pelos anos. No sonho, eu cantava as cantigas das lavadeiras da beira do rio e a criança, que deveria nascer chorando, vinha ao mundo sorrindo, como nunca havia visto.
Em dezembro, caiu um aguaceiro com trovoada, bem no dia da festa de Santa Bárbara. Dona Tonha trouxe as vestes guardadas e engomadas do ano anterior para o jarê, e meu pai, quanto mais velho ficava, mais envergonhado parecia, por ter que se vestir com saia e adè. Nem meu pai pôde prever em sua encantaria que as chuvas arrasariam um ano de trabalho duro nas roças de vazante. Mal havíamos saído da seca e passamos a sofrer com os prejuízos da cheia. Algumas casas, precárias, praticamente ruíram com a força da água e do vento.
Se a água não levar, a gente come”, meu pai me disse entre uma capina e outra no roçado. A água levou tudo. As roças viraram charcos e lagoas, e, ao invés da mandioca e da batata-doce, que apodreceram debaixo de tanta água, pegávamos cumbás, molés, cascudos e jundiás onde antes era sequeiro. Boa parte das famílias havia armazenado farinha de mandioca fabricada ao longo dos últimos meses. O povo de Água Negra passou a seguir para a cidade antes de o sol raiar, sem conhecimento do gerente, se embrenhando pelas matas para não serem descobertos, na intenção de vender o peixe e comprar mantimentos. Pescavam dia e noite, e só não conseguiam pescar em noite de lua nova porque os peixes ficavam com os dentes moles e não seguravam as iscas. Para despistar Sutério, os trabalhadores deixavam vara e anzol escondidos na mata da beira da lagoa ou amarrados em galhos de árvores. Naquele verão me embrenhei muitas vezes na lama com Domingas e minha mãe para apanhar peixe. Zezé e meu pai continuavam a trabalhar na roça do alto, mais distante da vazante, aproveitando a chuva que se tornou constante naqueles primeiros meses. Como havíamos cultivado nossos quintais desde o fim do longo período de estiagem, e muitas famílias fizeram o mesmo, abençoávamos a chuva e não lamentávamos, mesmo ao ver meses de trabalho debaixo d’água. Era doído ver a lavoura encharcada, mas tínhamos força e água para labutar com a roça de novo.
Naquele ano, continuei a ver Tobias. Eu o percebia me observando, me cercando com gestos corteses, mas era cada vez menor a frequência com que isso ocorria. Parecia dividir seu interesse por outras moças da fazenda. Ressentida, passei a ignorá-lo nos caminhos ou nas noites de jarê. Por um tempo, cheguei a achar que fazia aquela cena de dengo para me atiçar a atenção. E de fato, sentia vontade de desviar meu olhar para saber até onde iria com a bebedeira a que se entregava nessas noites. Mas continha o querer, me lembrava de minha condenação ao silêncio, da minha timidez rude, arisca, que me fazia selvagem e afastava as pessoas.
Desviei muitas vezes meu olhar para evitar os olhos dele. Mas quando percebia sua distração em outras moças e pessoas, ou sua dedicação no serviço, o observava ao longe e sentia o interesse crescer. Meu corpo se descontrolava como um potro, suava, exalava odores, tremia, fazia movimentos que levavam o coração à boca. Me lembrava da chegada de Severo ainda menino à Água Negra. Mas não havia toda essa potência no desejo, era algo bom como asas frágeis se movendo em meu corpo. Agora eu era uma fruta amadurecida convidando os pássaros a me bicarem, como os chupins que espantávamos dos arrozais até pouco tempo atrás.
Em certa manhã, meu pai se dirigiu a mim, à mesa que exalava o cheiro do café fresco que Salu coava. Disse que Tobias o havia procurado com respeito, porque queria me levar pra morar com ele. Falou que o homem se queixava da solidão na tapera da margem do Santo Antônio. Que tinha muita estima e consideração por mim. Por um minuto, imaginei meu pai alertando o homem do meu defeito, dizendo que a filha era deficiente, que tinha uma natureza forte, rude como uma onça, mas que tinha um bom coração. Imaginei meu pai lhe fazendo prometer que cuidaria de mim, que eu não conheceria sofrimento. Imaginei aquela conversa que nunca soube se existiu, porque nada foi dito sobre minha condição. Disse que não precisava responder logo, poderia pensar, e que só aceitasse se me sentisse pronta para ir, porque ele não queria conceder a mão da filha a qualquer um. Que só o fazia porque conheceu Tobias durante aquele ano e o considerava trabalhador e de respeito.
Não sei por que naquela hora me veio a imagem de Donana à cabeça. Minha avó surgiu em meus pensamentos com sua brabeza, com seu chapéu grande, com seu punhal com cabo de marfim, com as histórias que me contavam sobre ela, com seus três casamentos e o mistério da vida de tia Carmelita, de que ninguém tinha notícias. Sobre que resposta daria se fosse ela a cortejada naquelas circunstâncias. Se sim ou se não, escreveria os rumos que daria à minha vida num pedaço de papel pardo guardado debaixo do colchão.

Itamar Vieira Junior, in Torto Arado

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