A primeira vez que me chamaram de
professora, tive um imenso sentimento de culpa. Sentia-me uma
impostora, recebendo um título que eu julgava não merecer. Era meu
primeiro dia de aula como professora universitária, eu tinha 22
anos. Demorei para me acostumar com essa palavra, que até hoje me
soa mais como elogio do que como mera forma de tratamento.
Hoje em dia, já viro o pescoço quase
toda vez que ouço alguém dizer “professora”, não importa a
hora nem o lugar. Fenômeno parecido com o que acontece com pais e
mães quando ouvem essas palavras. Parece que determinados títulos
se tornam equivalentes aos nossos próprios nomes, a ligação entre
nós e eles é imediata.
Uma vez, estava num bloco de Carnaval em
Ipanema quando uma aluna gritou “PROFESSORA!”. Disfarcei as
cervejas e dei um abraço sorridente. Outra vez foi no Guarujá.
Encontrar aluno em trajes de banho, uma coisa terrível na vida de
qualquer professor. Também já teve encontro no Mercado Municipal,
no meio do sanduíche de mortadela. Na fileira de trás do avião. No
meio de show no Rock in Rio. Na sala de espera do exame de sangue.
Não tem escapatória, na alegria e na tristeza, na saúde e na
doença.
Achava que a coisa mais impressionante
que tinha me acontecido nesses anos tinha sido no dia em que
emparelhei com uma viatura da polícia militar e um policial gritou
“PROFESSORA!”. Quase enfartei até entender que era o Márcio. E,
sem pensar duas vezes, comecei a dar uma bela bronca no policial
dizendo que ele andava faltando muito às aulas. Depois, calculei que
ele estava armado e que poderia ter me prendido por desacato. Mas
professores são professores, não tem jeito.
Contudo, certa vez em Lisboa aconteceu
uma coisa ainda mais impressionante. Eu estava no metrô, umas oito
da noite, torcendo para chegar logo e assistir ao jogo Benfica x
Napoli pela Champions League. O vagão estava vazio. Um rapaz entrou
e veio caminhando para o assento em frente ao meu, sentou-se, olhou
para a minha cara e... “PROFESSORA!”. Fiquei confusa, não dou
aula em Lisboa. Mas na hora em que olhei para a cara dele tive
certeza de que era meu aluno.
Ele explicou. Foi meu aluno na zona leste
de São Paulo. Formou-se em Administração de Empresas e tinha tido
aula de Direito do Trabalho comigo uns quatro anos antes. Disse que
me escreveu, perguntando o que eu achava de um MBA na Universidade
Nova de Lisboa. Lembrei-me da conversa e de ter lhe dito que era uma
ótima ideia. E cá estava ele, tinha chegado sozinho havia dois
dias, numa cidade que não conhecia, para encarar seu maior desafio.
Trocamos contatos, um abraço e desci na
minha estação. Eu mal podia acreditar. Nem sei dizer qual
probabilidade era menor: a do menino entrar no mesmo vagão e se
sentar na minha frente ou a do menino simples da zona leste voar até
a Europa para fazer um MBA numa universidade de renome.
Subi as escadas do metrô e encontrei a
noite fria. Caminhei pensando na honra que eu sentia por ter feito
parte da formação e do caminho daquela pessoa. Fiquei pensando na
medonha situação na qual o Brasil mergulhou e na asquerosa fala de
um ministro da Educação que disse que quem pode pagar universidade,
como seus filhos, fará curso universitário, e quem não puder pagar
simplesmente não fará.
Como professora de uma faculdade
particular direcionada para a classe média baixa na zona leste de
São Paulo, doeu pensar que poucos meninos como aquele voarão –
sobretudo daqui para a frente. Mas como professora vocacionada de
corpo e de alma, incuravelmente otimista e inconsequentemente
intransigente, pensei que nada vai nos fazer parar. Nem corte, nem
PEC, nem nada.
Seguiremos questionando, criticando e
pressionando. As salas de aula seguirão como berçário do
inconformismo. E nós, professores, seguiremos firmes como seus
obstetras.
Ruth Manus, in Um dia ainda vamos rir de tudo isso
Uau😢
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