Eu
estava no MAM do Rio, na primeira fila do desfile de moda, vendo a
Gisele Bündchen passar e, cá entre nós, vou ser sincero. O Grande
Otelo não me saía da cabeça.
Foi
sei lá quando, também não me lembro bem qual era o exato assunto.
Talvez samba das antigas. Só sei que, do lado de cá do telefone,
intrépido repórter em ação, eu perguntei alguma coisa para o
Otelo e ele, ator fabuloso e também compositor, autor do clássico
“Praça Onze”, autoridade na história da música popular, ele
estupefaciou-se do lado de lá com o que tinha ouvido da minha
arguição.
“Meu
filho”, começou, “você é freelancer, não?” – e
imediatamente eu o imaginei com aqueles olhos esbugalhados que,
quando entravam em close na tela, eram gargalhada certa na plateia.
Dessa vez, os olhos arregalados que eu desenhava do outro lado do
telefone pareciam marcar o início de um filme de terror.
Eu
disse que de maneira nenhuma, “seu” Otelo, estava de carteira
assinada - sem saber exatamente aonde o grande nome das artes
nacionais queria chegar com aquela dúvida estranha. Suspeitei que
Otelo, de voz muito tensa e enérgica, bem diferente daquela serelepe
que usava nas chanchadas e embalou de piadas os momentos mais alegres
do país, Grande Otelo parecia contrariado com o que eu lhe havia
perguntado.
Tenho
certeza de que a minha questão era correta, acho que algo sobre a
ala das baianas constituída por estivadores do Cais do Porto, coisa
comum no início dos desfiles. Eu já havia entrevistado Ismael
Silva, fundador da primeira escola. Sabia das gambiarras que
iluminavam os cordões e também, como era costume nos tempos da
Praça Onze, da técnica de os compositores improvisarem, ao vivo, de
primeira, a segunda parte do samba. Eu podia não ser um Nei Lopes,
mas estava compenetrado e pimpão no meu sapato bicolor de raiz.
Sabia o terreiro-tia Ciata em que pisava.
Otelo,
no entanto, foi em frente, tentando parecer cruel como se estivesse
vendo em mim um novo Oscarito para sparring. Quando ele soube que eu
era do quadro fixo da revista Veja, revelou-se, ao seu jeito
Atlântida de ser, sinceramente descrente.
“Meu
filho, essa sua pergunta é pergunta de freelancer!!”
Até
hoje eu não sei direito o significado da expressão “pergunta de
freelancer” com que o ator me nocauteou. A princípio o freelancer
é apenas um profissional sem vínculo empregatício. O fato de estar
livre, trabalhando para a empresa que quiser, não informa uma
qualificação inferior a seu respeito. Mas eu estava falando com
Grande Otelo, companheiro daquele Oscarito que certa vez, numa
comédia, acariciou a barriga inchada depois de uma feijoada, fez uma
carinha fofa de felicidade e disse para o mesmo Grande Otelo que
agora me estava ao telefone:
“Ih,
estou com uma idiossincrasia!”
Otelo
tinha sido criado nessa escola de poetas-mambembes, os que jogam as
palavrinhas para o alto e lhes inventam novos valores, delícias
estapafúrdias, quando elas caem de volta em suas línguas. Deve ter
sido por isso e, onde quer que ele esteja, quase sempre rodando em
algum VHS da minha casa, mando-lhe um beijo daqueles que dava com a
boca imitando uma ventosa.
Hoje,
superado o momento em que a expressão podia ter feito algum estrago
na minha autoestima, depois de gasto bom dinheiro através do tempo
com sessões de análise que esconderam qualquer vestígio de sua
carga maléfica em minh’alma profissional, gosto de ouvir a voz do
Otelo me dizendo com exclusividade esse texto que parece típico do
nonsense das comédias da Atlântida.
Eu
me lembrei de tudo isso quando vi Gisele desfilando, e era o que
tentava dizer ao iniciar esta enorme idiossincrasia, porque fui
acometido, no silêncio de minha cabeça, por uma daquelas dúvidas
assombradas que desde o papo com Grande Otelo costumei identificar
como “pergunta de freelancer”.
Já
acompanhei uma borboleta amarela batendo asas pelas ruas do Centro,
vi Gérson “canhotinha de ouro” passeando com a bola presa nos
pés, segui o trânsito de uma aurora boreal em Estocolmo, vibrei com
corridas de submarino no Morro do Pasmado, estava na multidão de 100
mil marchando contra a ditadura, boquiabri-me com David Parsons
voando no Municipal, deslizei num trem-bala pelo Japão e sei, depois
de registrar todos esses movimentos do Homem sobre a Terra, posso
dizer que sei – nada se compara à arte sublime da mulher que
caminha.
O
samba-canção queria a paz de criança dormindo. A crônica
pós-hodierna quer o nó na garganta do homem que observa a mulher
andando. Há os que a preferem flanando no momento em que não se
percebem observadas. Seriam menos técnicas e próximas da criança
de asas no berço de Dolores Duran. Eu, humilde, passo. Não tenho
preferência.
Um
pé depois do outro, as ancas projetando-se em contraponto para o
lado inverso da perna que avança. Algumas balançam mais, outras
simplesmente transformam o ilíaco em seta – e vão, em linha reta,
deixando que as sensações da vida se abatam sobre os que ainda têm
fôlego e assistem. Gary Winogrand, meu fotógrafo de cabeceira, fez
um livro inteiro sobre isso, Women Are Beautiful. Tom e
Vinicius criaram em Ipanema o Hino Nacional num êxtase de
alumbramento sobre uma delas que passava. Não é corpo, não é
carne, é arte etérea do espírito de Deus movendo-se de novo e de
novo sobre a face das águas. Rubem Braga, que da varanda sobre a
Barão da Torre tudo via, percebeu que uma delas não flanava apenas
com as pernas. Como dizer que o movimento de seus cabelos castanhos
nos faz bem?
Eu
vi Gisele Bündchen caminhando sobre a grama do Aterro, ia lhe
perguntar que nuvens eram aquelas sob seus tornozelos, como agradecer
a brisa que borrifa em nossos artelhos, para onde, se ela sabe,
caminha esse arco-íris de pernas brancas pretas amarelas, e, afinal,
para que tanta perna, meu Deus? Mas foi aí que lembrei do grande
Grande Otelo e fechei a boca. Calei o estupor idiossincrático e, em
frente ao divino, tive a humildade de apenas abrir os olhos. Eles não
fazem perguntas de freelancer.
Joaquim Ferreira dos Santos, in Em busca do borogodó perdido
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