Houve um tempo em que tudo parecia muito
estável e muito seguro. Tudo e todos. Eles eram todo dia os mesmos e
nós achávamos graça nas mesmas piadas, assistíamos aos mesmos
programas na TV, gostávamos das mesmas bandas. Nossos tímidos
planos de viagens eram conjuntos, nossos planos para o fim de semana
harmonizavam perfeitamente. Esse tempo passou.
Hoje em dia é um pouco estranho. Os
tipos de humor mudaram. Cada um assiste a uma série diferente –
somente Game of Thrones ainda é capaz de unir parte de nós.
Alguns ouvem Liniker enquanto outros elevam o volume ao máximo
berrando Cake By The Ocean. Uns fumam, outros não comem
carne, outros só sabem se divertir com muito destilado, outros
insistem em propor restaurantes que cobram 150 reais por cabeça. A
gente acaba ficando confusa.
Poderia dizer que hoje tenho um rol muito
mais rico e diverso de amigos. Opiniões diferentes, programas de
vários estilos, trilha sonora variada. Mas não vou mentir: sinto
falta de como tudo era antes. Sinto falta de quando a gente marcava
um hambúrguer e pronto, chegava, ria, dividia a conta e estava tudo
bem. Hoje tem que ter antecedência, tem debate sobre o lugar
escolhido, tem uma leve sensação de que nossos velhos conhecidos,
por vezes, se tornam novos desconhecidos – com hábitos, propostas
e roteiros inéditos.
Talvez o sinal mais evidente seja o fato
de as nossas amizades terem passado a viver de lembranças. Nos
encontramos e começamos a falar sobre aquele dia engraçadíssimo de
2001, sobre aquele namorado esquisito que a Ju tinha aos 15 anos,
sobre o porre na viagem de formatura. Nos apegamos às nossas
melhores memórias e parece que são só elas que ainda nos unem.
Sentados numa mesa de restaurante, ruminamos o nosso delicioso
passado e então eu me pergunto: o que estamos construindo para nos
lembrarmos daqui a outros 15 anos? Ou as memórias de escola e
faculdade deverão perdurar até lá?
Dói bastante perceber os desencontros.
Uma liga muito para a marca da roupa, outra só para a legenda
partidária. Um milita contra a homofobia, outro ainda faz piada com
homem que usa camisa cor-de-rosa. Uma namora um advogado e outra um
artista plástico. É fácil entender por que encontramos refúgio
tão seguro nas memórias. As diferenças do presente nos assustam e
é mais fácil nos divertirmos com as semelhanças do passado.
Mas a parte mais difícil é assumir que
a gente também mudou – e não foi pouco. É fácil culpar os
outros, dizer que um era mais divertido antigamente, outro era mais
maleável, o terceiro não namorava esse babaca de hoje, a quarta não
era workaholic, o quinto não ficava citando filósofos no bar. Mas e
a gente? A gente também não mudou? Também não frustra em certa
medida as expectativas e as lembranças alheias? É claro que sim, o
tempo não perdoa ninguém.
A única coisa que segue segura é o
afeto. Só nos encontramos – quando as agendas permitem – por
causa do afeto que perdura. É ele quem resiste às nossas
divergências políticas, aos nossos cônjuges que não têm nada a
ver um com o outro, aos nossos empregos que não dialogam, aos nossos
interesses tão díspares. É o afeto que toma porrada, que vê
aquela gente tão mudada, mas que permanece de pé e resiste,
agarrando-as. É por ele que a gente insiste. É por ele que a gente
não larga o osso.
E o afeto mora no melhor lugar possível:
no outro. Aquela pessoa que mudou a cor do cabelo, o tipo de roupa e
o discurso ainda é aquela na qual nosso afeto se instalou há tantos
anos e se nega a ir embora. E talvez a gente precise entender que não
é necessário usar o passado como escudo. Se o afeto ainda mora ali,
nós ainda somos os mesmos. Todo o resto – bolsa, tom de voz,
bebida e trabalho – é carcaça. A essência não mudou.
De fato é mais fácil culpar o outro,
culpar a vida, maldizer o presente e vangloriar o passado do que
trabalhar as diferenças com afeto. É chato chegar ao bar e escolher
carinhosamente um assunto que agrade o outro. É mais fácil chegar e
falar sobre o que nos interessa e reclamar que as conversas não
fluem. Mas não tem jeito: todo amor dá trabalho. E sabe? São eles.
São os amigos da vida toda, ainda são eles. Eles valem a pena. Eles
continuam sendo a base, mesmo que tenham mudado de aspecto. Não
desistam de mim, queridos. Eu vou sempre insistir em nós.
Ruth Manus, in Um dia ainda vamos rir de tudo isso
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