Quem
se espanta com o espetáculo de horror diversificado que o mundo de
hoje oferece faria bem se tivesse o dicionário como livro de leitura
diurna e noturna. Pois ali está, na letra M, a chave do temperamento
homicida, que convive no homem com suas tendências angélicas, e
convive em perfeita harmonia de namorados.
O
consulente verá que matar é verbo copiosamente conjugado por ele
próprio. Não importa que cultive a mansuetude, a filantropia, o
sentimentalismo; que redija projetos de paz universal, à maneira de
Kant, e considere abominações o assassínio e o genocídio. Vive
matando.
A
ideia de matar é de tal modo inerente ao homem, que, à falta de
atentados sanguinolentos a cometer, ele mata calmamente o tempo. Sua
linguagem o trai. Por que não diz, nas horas de ócio e recreação
ingênua, que está vivendo o tempo? Prefere matá-lo.
Todos
os dias, mais de uma vez, matamos a fome, em vez de satisfazê-la.
Não é preciso lembrar como um número infinito de pessoas perpetra
essa morte: através da morte efetiva de rebanhos inteiros, praticada
tecnicamente em lugar de horror industrial, denominado matadouro. Aí,
matar já não é expressão metafórica: é matar mesmo.
O
estudante que falta à classe confessa que matou a aula, o que
implica matança do professor, da matéria e, consequentemente, de
parte do seu acervo individual de conhecimento, morta antes de chegar
a destino. No jogo mais intelectual que se conhece, pretende-se não
apenas vencer o competidor, mas liquidá-lo pela aplicação de
xeque-mate. Não admira que, nas discussões, o argumento mais
poderoso se torne arma de fogo de grande eficácia letal: mata na
cabeça.
Beber
um gole no botequim, ato de aparência gratuita, confortador e
pacificante, envolve sinistra conotação. É o mata-bicho,
indiscriminado. E quantos bichos se matam, em pensamento, a cada
instante! Até para definir as coisas naturais adotamos ponto de
vista de morte violenta. Essa planta convolvulácea é apresentada
por sua propriedade maléfica: mata-cabras. Nasceu para isso, para
dizimar determinada espécie de mamíferos? Não. Assim a batizamos.
Outra é mata-cachorro. Uma terceira, mata-cavalo, e o dicionarista
acrescenta o requinte: “goza da fama de produzir frutos venenosos”.
Certo peixe fluvial atende (ou devia atender) por mata-gato, como se
pulasse d’água para caçar felinos por aí, ou se estes
mergulhassem com intenção de ajustar contas com ele. Em Santa
Catarina, o vento de inverno que sopra lá dos Andes é recebido com
a exclamação: “Chegou o mata-baiano”.
Já
não se usa, mas usou-se muito um processo de secar a tinta em cartas
e documentos quaisquer: botar por cima um papel grosso, chupão, que
se chamava mata-borrão e matava mesmo, sugando o sangue azul da
vítima, qual vampiro de escritório.
A
carreta necessita de correia de couro que una seu eixo ao leito. O
nome que se arranjou para identificá-la, com sadismo, é mata-boi.
Mata-cachorro não é só planta flacurtiácea, que acumula o título
de mata-calado. É também alcunha de soldado de polícia estadual, e
do pobre-diabo que, no circo, estende o tapete e prepara o picadeiro
para a função.
Matar
charadas constitui motivo de orgulho intelectual para o matador. Há
um matador profissional, remunerado pelos cofres públicos: o
mata-mosquito, que pouca gente conhece como guarda sanitário.
Mata-junta? É a fasquia usada para vedar juntas entre tábuas. O
sujeito vulgarmente conhecido como chato, ao repetir a mesma
cantilena, “mata o bicho do ouvido”. Certa espécie de algodoeiro
é mata-mineiro, certa árvore é matamatá, ninguém no interior
ignora o que seja mata-burro, mata-cobra tanto é marimbondo como
porrete e formiga. Ferida em lombo de animal chama-se matadura. Nosso
admirável dedo polegar, só lhe reconhecem uma prestança: a de
mata-piolhos.
Mandioca
mata-negro. Peixe matante. Vegetal mata-olho. Mata-pulga, planta de
que se fazem vassouras. Mata-rato, cigarro ordinário. Enfeites e
atavios, meios especiais para atingir certos fins, são matadores.
“Ela veio com todos os matadores” provoca admiração e êxtase.
“Eunice com seus olhos matadores”, decassílabo de vítima
jubilosa.
Se
a linguagem espelha o homem, e se o homem adorna a linguagem com tais
subpensamentos de matar, não admira que os atos de banditismo, a
explosão intencional de aviões, o fuzilamento de reféns, o
bombardeio aéreo de alvos residenciais, os pogroms, o napalm, as
bombas A e H, a variada tragédia dos dias modernos se revele como
afirmação cotidiana do lado perverso do ser humano. Admira é que
existam a pesquisa de antibióticos, Cruz Vermelha Internacional,
Mozart, o amor.
Carlos Drummond de Andrade, in De notícias e não notícias faz-se a crônica
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