domingo, 27 de junho de 2021

Mudança de idade

Para explicar
os excessos do meu irmão
a minha mãe dizia:
está na mudança de idade.

Na altura,
eu não tinha idade nenhuma
e o tempo era todo meu.

Despontavam borbulhas
no rosto do meu irmão,
eu morria de inveja
enquanto me perguntava:
em que idade a idade muda?

Que vida,
escondida de mim, vivia ele?
Em que adiantada estação
o tempo lhe vinha comer à mão?

Na espera de recompensa,
eu à lua pedia uma outra idade.

Respondiam-me batuques
mas vinham de longe,
de onde já não chega o luar.

Antes de dormirmos
a mãe vinha esticar os lençóis
que era um modo
de beijar o nosso sono.

Meu anjo, não durmas triste, pedia.
E eu não sabia
se era comigo que ela falava.

A tristeza, dizia,
é uma doença envergonhada.
Não aprendas a gostar dessa doença.

As suas palavras
soavam mais longe
que os tambores noturnos.

O que invejas, falava a mãe, não é a idade.
É a vida
para além do sonho.

Idades mudaram-me,
calaram-se tambores,
na lua se anichou a materna voz.
E eu já nada reclamo.

Agora sei:
apenas o amor nos rouba do tempo.

E ainda hoje
estico os lençóis
antes de adormecer.

Mia Couto

Nenhum comentário:

Postar um comentário