Todo mundo gosta de beleza. Até os
pobres. A pobreza também se enfeita. Primeiro era preciso limpar a
casa abandonada. Varrer. Tirar as teias de aranha e os picumãs.
Picumãs eram estalactites que ficavam pendurados sobre o fogão de
lenha, formados pela combinação de teias de aranha e gordura e que,
segundo as benzedeiras, tinham extraordinários poderes medicinais
para a cicatrização de umbigos. O fogão tinha de ser limpo, cheio
que estava com as cinzas deixadas por moradores anteriores. Era
preciso caçar os ovos de baratas escondidos nas gretas.
Havia as prateleiras de tábua que o
tempo, o pó, a fumaça das lamparinas e do fogão haviam pretejado.
As mulheres da cidade enfeitavam suas prateleiras com pano bordado. A
Adélia Prado, numa declaração de amor, escreveu ao seu amado:
“Você me espicaça como o desenho do peixe na guarnição da
cozinha”... Nunca me passou pela cabeça que guarnição de
cozinha pudesse entrar em declaração de amor... Quando não tinha
pano bordado o jeito era comprar papel cor-de-rosa para fazer os
enfeites. Se não tinha nem pano com peixe bordado nem papel comprado
o jeito era usar jornal. Minha mãe repicava jornal pra dar uma
alegria pobre às prateleiras. E plantava roseiras. Uma roseira
florida era sinal de nobreza! Com as rosas brancas trepadeiras se
fazia chá pra pôr nos olhos, como colírio. Havia uma coisa que não
tinha jeito: os ratos. De noite ficavam correndo entre os caibros
redondos e as telhas. Ninguém se assustava. Ninguém gritava.
Ninguém corria. Sabia-se que era inútil. O jeito era conviver com
eles.
Eu não tinha brinquedos. Acho que nem
sabia o que eram brinquedos, desses que se compram em lojas. Minha
mãe me fazia uns brinquedos. Ela era uma artesã consumada em
petecas de palha com penas de galinha. E fazia-me corrupios com
botões grandes e barbante. E ensinou-me a fazer barquinhos e chapéus
de papel, e a dobrar jornal para recortar dezenas de bonequinhos de
mãos dadas. O livro que mais me encantava tinha sido dela, quando
criança. Eram gravuras que faziam sonhar. Um negro arrastando-se na
direção de um jacaré de boca aberta para enfiar verticalmente
dentro de sua boca um pau pontudo. Quando ele fechasse a boca estaria
preso. Eu pensava: “Será que ele conseguiu?”. Uma gravura de um
prédio em Nova York com a seguinte explicação: “Nos Estados
Unidos há casas com dez andares”. Uma família de esquimós, pais
e filhos vestidos com peles, saudando o sol que aparecia depois de
seis meses de noite. E a mais querida: um menino e uma menina fazendo
um minijardim com árvores, riachinhos, pontes, cachoeiras. Brincava
com pedras, bichos, sabugos de milho, arcos de barril. Da minha mãe
recebi minha primeira lição de teologia, embora ela o fizesse com
boas intenções. De noite, antes de dormir, ela me fazia repetir:
“Agora me deito para dormir. Guarda-me o Deus em teu amor. Se eu
morrer sem acordar, recebe a minhalma, ó Senhor, amém”. Essa
reza me ensinou que é perigoso dormir. A gente está distraído,
guarda baixa, e é possível que a morte ataque. Aprendi que a gente
morre. Por isso é preciso Deus, por causa da morte. O sono é uma
morte da qual se acorda. Toda noite eu repetia a lição. E aprendi
que, morrendo, a alma, uma coisa que mora no corpo, volta para Deus.
Eu não queria voltar para Deus. Preferia a terra ao céu. Deus, que
pode tudo, bem que poderia me proteger da morte, dando-lhe ordens ao
contrário...
Ela também me contava estórias. Uma
delas tinha um refrão: “Jingue-le-jingue que eu vou para a
Angola...” . Eu não sabia o que era Angola. Depois ela me disse
que essa estória fora a Iaiá que lhe contara. A Iaiá era uma
escrava que permanecera na casa do meu avô mesmo depois da Lei
Áurea. Ficara porque não tinha para onde ir. Aí entendi o que era
Angola. Era a Iaiá que cuidava da minha mãe quando menina. Uma
outra estória era a da madrasta que enterrara a enteada como castigo
por não haver impedido que os passarinhos bicassem os figos da
figueira. Mas seus cabelos brotaram do fundo da terra. O jardineiro,
ao tentar capiná-los, ouviu um canto melancólico: “Jardineiro
do meu pai não capine meus cabelos. Minha mãe me penteava. Minha
madrasta me enterrou pelo figo da figueira que o passarinho buscou”.
Ao final o pai salva a filha da sepultura onde a madrasta a
enterrara. Que maravilhoso tema para uma meditação psicanalítica!
E cantava para me fazer dormir: “Tatu subiu no pau, é mentira
de você. Lagarto, lagartixa, isso sim que pode ser...” .
Rubem Alves, in O velho que acordou criança
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