terça-feira, 8 de junho de 2021

Minha mãe

Todo mundo gosta de beleza. Até os pobres. A pobreza também se enfeita. Primeiro era preciso limpar a casa abandonada. Varrer. Tirar as teias de aranha e os picumãs. Picumãs eram estalactites que ficavam pendurados sobre o fogão de lenha, formados pela combinação de teias de aranha e gordura e que, segundo as benzedeiras, tinham extraordinários poderes medicinais para a cicatrização de umbigos. O fogão tinha de ser limpo, cheio que estava com as cinzas deixadas por moradores anteriores. Era preciso caçar os ovos de baratas escondidos nas gretas.
Havia as prateleiras de tábua que o tempo, o pó, a fumaça das lamparinas e do fogão haviam pretejado. As mulheres da cidade enfeitavam suas prateleiras com pano bordado. A Adélia Prado, numa declaração de amor, escreveu ao seu amado: “Você me espicaça como o desenho do peixe na guarnição da cozinha”... Nunca me passou pela cabeça que guarnição de cozinha pudesse entrar em declaração de amor... Quando não tinha pano bordado o jeito era comprar papel cor-de-rosa para fazer os enfeites. Se não tinha nem pano com peixe bordado nem papel comprado o jeito era usar jornal. Minha mãe repicava jornal pra dar uma alegria pobre às prateleiras. E plantava roseiras. Uma roseira florida era sinal de nobreza! Com as rosas brancas trepadeiras se fazia chá pra pôr nos olhos, como colírio. Havia uma coisa que não tinha jeito: os ratos. De noite ficavam correndo entre os caibros redondos e as telhas. Ninguém se assustava. Ninguém gritava. Ninguém corria. Sabia-se que era inútil. O jeito era conviver com eles.
Eu não tinha brinquedos. Acho que nem sabia o que eram brinquedos, desses que se compram em lojas. Minha mãe me fazia uns brinquedos. Ela era uma artesã consumada em petecas de palha com penas de galinha. E fazia-me corrupios com botões grandes e barbante. E ensinou-me a fazer barquinhos e chapéus de papel, e a dobrar jornal para recortar dezenas de bonequinhos de mãos dadas. O livro que mais me encantava tinha sido dela, quando criança. Eram gravuras que faziam sonhar. Um negro arrastando-se na direção de um jacaré de boca aberta para enfiar verticalmente dentro de sua boca um pau pontudo. Quando ele fechasse a boca estaria preso. Eu pensava: “Será que ele conseguiu?”. Uma gravura de um prédio em Nova York com a seguinte explicação: “Nos Estados Unidos há casas com dez andares”. Uma família de esquimós, pais e filhos vestidos com peles, saudando o sol que aparecia depois de seis meses de noite. E a mais querida: um menino e uma menina fazendo um minijardim com árvores, riachinhos, pontes, cachoeiras. Brincava com pedras, bichos, sabugos de milho, arcos de barril. Da minha mãe recebi minha primeira lição de teologia, embora ela o fizesse com boas intenções. De noite, antes de dormir, ela me fazia repetir: “Agora me deito para dormir. Guarda-me o Deus em teu amor. Se eu morrer sem acordar, recebe a minhalma, ó Senhor, amém”. Essa reza me ensinou que é perigoso dormir. A gente está distraído, guarda baixa, e é possível que a morte ataque. Aprendi que a gente morre. Por isso é preciso Deus, por causa da morte. O sono é uma morte da qual se acorda. Toda noite eu repetia a lição. E aprendi que, morrendo, a alma, uma coisa que mora no corpo, volta para Deus. Eu não queria voltar para Deus. Preferia a terra ao céu. Deus, que pode tudo, bem que poderia me proteger da morte, dando-lhe ordens ao contrário...
Ela também me contava estórias. Uma delas tinha um refrão: “Jingue-le-jingue que eu vou para a Angola...” . Eu não sabia o que era Angola. Depois ela me disse que essa estória fora a Iaiá que lhe contara. A Iaiá era uma escrava que permanecera na casa do meu avô mesmo depois da Lei Áurea. Ficara porque não tinha para onde ir. Aí entendi o que era Angola. Era a Iaiá que cuidava da minha mãe quando menina. Uma outra estória era a da madrasta que enterrara a enteada como castigo por não haver impedido que os passarinhos bicassem os figos da figueira. Mas seus cabelos brotaram do fundo da terra. O jardineiro, ao tentar capiná-los, ouviu um canto melancólico: “Jardineiro do meu pai não capine meus cabelos. Minha mãe me penteava. Minha madrasta me enterrou pelo figo da figueira que o passarinho buscou”. Ao final o pai salva a filha da sepultura onde a madrasta a enterrara. Que maravilhoso tema para uma meditação psicanalítica! E cantava para me fazer dormir: “Tatu subiu no pau, é mentira de você. Lagarto, lagartixa, isso sim que pode ser...” .

Rubem Alves, in O velho que acordou criança

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