segunda-feira, 28 de junho de 2021

Margarida

A garota em êxtase brandiu o postal que recebera do namorado em excursão na Grécia:
Coisa mais linda! Olhe só o que ele me escreveu: “Eu queria desfolhar teu coração como se ele fosse a mais margarida de todas as margaridas”. Marquinhos é genial, o senhor não acha?
Pode ser que seja, não conheço Marquinhos. Se bem que antes da era Pierre Cardin, genial era Dante, Da Vinci, Einstein, outros assim. Mas essa frase não é de Marquinhos.
Não é de Marquinhos?! Tá com a letra dele, assinada por ele.
Estou vendo que assinou, mas é de Darío.
Quem? O Darío, do Atlético Mineiro? Sem essa!
Não, minha florzinha, Darío, Rubén Darío, o poeta da Nicarágua.
Não conheço. Então Rubén Darío falou pra Marquinhos e Marquinhos achou bacana e pediu emprestado a ele?
Tenho a impressão que o Marquinhos não pediu nada emprestado a Rubén Darío. Tomou sem consultar.
Como é que o senhor sabe?
É muito difícil consultar o Darío.
Por quê? Ele não dá bola pra gente? Não gosta da mocidade? É careta?
Não é nada disso. O Darío não é encontrado em parte alguma.
Ah, ele gosta de bancar o invisível, né?
Não creio que goste, mas é exatamente o caso dele: invisível.
Não dá pra entender.
Vai entender logo. Ele morreu em 1916.
Ah! E como é que o Marquinhos descobriu essa margarida, me conte!
Simples. Leu num livro de poemas de Rubén Darío.
Marquinhos não é ligado a leitura. Duvido.
Se não leu no livro, leu em alguma revista, em alguma parte.
Hã…
Ficou tão triste — os olhos, a boca, a testa franzida — que achei de meu dever confortá-la:
Que importância tem isso? A frase é de Darío, é de Marquinhos, é de toda pessoa sensível, capaz de assimilar o coração à margarina… Desculpe: à margarida.
Muxoxo:
Se é de todos, não é de ninguém, não vale nada.
Pelo contrário. Fica valendo mais, torna-se sentimento universal.
Ah, o senhor está por fora. Eu queria a margarida só pra mim. Copiada não tem graça. A graça era imaginar Marquinhos, muito sério, desfolhando meu coração transformado em margarida, para saber se eu gosto dele, um pouquinho, bastante, muito loucamente, nada. E a margarida sempre com uma pétala escondida por baixo da outra, entende? pra ele não ter certeza, por que essa certeza eu não dava… Era gozado.
Continue imaginando.
Agora não dá pé. Marquinhos roubou a margarida, quis dar uma de poeta. Não colou.
Espere um pouco. Eu disse que a margarida era de Rubén Darío? Esta cabeça! Esquece, minha filha. Agora me lembro que Rubén Darío nem podia ouvir falar em margarita, começava a espirrar, a tossir, ficava sufocado, uma coisa horrível. Alergia — que no tempo dele ainda não estava batizada. Pois é. Garanto a você, posso jurar que a margarida não é de Darío.
De quem é então?
De Marquinhos, ué.
Tem certeza que nunca ninguém antes de Marquinhos escreveu “a mais margarida de todas as margaridas”? O senhor lê milhões, pode me responder. Tem certeza?
Absoluta. Marquinhos é genial, reconheço. Mas, por via das dúvidas, continue escondendo uma pétala de reserva, sim?
Pode deixar por minha conta. Puxa, quase que eu parava de transar com o Marquinhos por causa do senhor. Agora tá legal, tchau, vovô!
Vovô: foi assim que ela me agradeceu a mentira generosa, a bandida.

Carlos Drummond de Andrade, in De notícias e não notícias faz-se a crônica

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