Uma mulher com duas almas assombrava
nossa rua. Uma alma de Deus a serviço de uma alma do demônio. Uma
fada a serviço de uma bruxa. A fada possuía seu corpo, a bruxa, seu
coração. Ela vestia seu estreito corpo com tecidos mansos,
estampados de miosótis ou bolinhas de um azul calmo sobre seda
clara. Seu cabelo, na altura da nuca, era branco misturado ao cinza
que cobre as brasas. Andava com um passinho leve — pardal ciscando
a terra. Seu sorriso, bastava reparar, era suspenso como o das
hienas. O coração, contudo, um imenso caldeirão onde borbulhavam a
inveja, a mágoa, o desamor. Diziam que seu marido partiu atrás de
menos martírios. E a todos que a fada seduzia a bruxa servia sua
poção amarga. Seu cachorro branco, tímido, portava uma doença de
pele. Não sei se ele almejava o céu ou o inferno. O cão, ao olhar,
suplicava carinho, mas não se deixava acariciar. Teria o cachorro
também duas almas? A madrasta, arreada sobre o muro, nego ciava
tomate com a mulher de duas almas. Eu suspeitava.
A cidade acordava lerda, como se fosse
possível escolher os sonhos. O sino da igreja serrava as ruas,
becos, praças. Os habitantes sentiam-se prenhes de Deus e perdoados
dos pecados ainda por cometerem. O cheiro do café conciliava as
almas e a vida, provisoriamente. Ao tomarem das palavras, os lamentos
rabiscavam o povoado como se impedidos de escolher outro destino.
Bartolomeu Campos de Queirós, in Vermelho Amargo
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