domingo, 6 de junho de 2021

Céu dos antigos

Se um bicho da seda desse o nome de céu ao frouxel que lhe envolve o casulo, não raciocinaria pior que os antigos chamando céu à atmosfera, que é, como muito bem diz o Sr. de Fontenelle em seus Mondes, o cotão do nosso casulo.
Os vapores que se exalam dos mares e do solo e formam as nuvens, os meteoros e os trovões, foram a princípio tomados pela morada dos deuses. Em Homero os deuses sempre descem em nuvens de ouro. Vem daí ainda hoje representarem-nos os pintores sentados em uma nuvem. Mas como era justo estivesse o senhor dos deuses mais à vontade que os outros, deram-lhe uma águia por veículo, por ser a ave que mais alto voa.
Vendo os senhores das cidades morarem em cidadelas eretas nas assomadas das montanhas, julgaram os antigos gregos que os deuses também deviam ter uma cidadela, e colocaram-na na Tessália, no monte Olimpo, cujo vértice não raro se amortalha de nuvens De sorte que seu palácio se achava no mesmo nível do céu.
Estrelas e planetas, que parecem engastados na abóbada azul da atmosfera, foram transformados em outras tantas moradas de deuses. Sete dentre estes tiveram cada um seu planeta. Os outros alojaram-se onde melhor puderam. Em sala a que conduzia a via láctea reunia-se o conselho geral dos deuses: necessário era que tivessem seu congresso no ar, já que os homens tinham seus paços municipais na terra.
Quando os titãs, espécie de animais entre os deuses e os homens, declararam uma guerra justíssima aos deuses em vindicação de sua herança paterna – sendo como eram filhos do Céu e da Terra – não tiveram mais que empilhar duas ou três montanhas umas sobre outras para se tornarem senhores do céu e do castelo do Olimpo.

Neve foret terris securior arduus aether,
affectasse ferunt regnum coeleste gigantes,
altaque congestos struxisse ad sidera montes.

Essa física de crianças e de velhos era antiquíssima. Contudo é muito provável tivessem os caldeus ideias tão sãs quanto nós do que se chama o céu. Colocavam eles o Sol no centro do nosso mundo planetário, em distância da Terra aproximadamente a mesma reconhecida hoje. Em torno do Sol faziam girar a Terra e todos os planetas, ensina-nos Aristarco de Samos. É o verdadeiro sistema do universo, posteriormente reeditado por Copérnico. Os filósofos, porém, guardavam o segredo para si, a fim de serem mais respeitados pelos reis e pelo povo, ou antes, para não serem perseguidos.
É tão familiar aos homens a linguagem do erro que ainda chamamos céu aos vapores e ao espaço entre a Terra e a Lua. Dizemos subir ao céu, como dizemos que o Sol gira, conquanto saibamos que não é assim. Possivelmente, para habitantes da Lua, nós é que somos o céu. Cada planeta coloca o seu céu no planeta vizinho.
Se se perguntasse a Homero para que céu tinha ido a alma de Sarpédon, onde estava a de Hércules, pôr-se-ia o grande poeta em calças pardas. Certamente responderia com versos harmoniosos.
Como saber se a alma aérea de Hércules se acharia mais a vontade em Vênus ou Saturno que na Terra? Ou estaria no Sol? É de crer que não estivesse muito à vontade nessa fornalha. Finalmente, que entenderiam os antigos por o céu? Ignoravam o que fosse. Sempre disseram o céu e a terra. É como se dissessem o infinito e um átomo. Propriamente falando não existe céu. O que há é uma quantidade prodigiosa de globos girando no vazio do espaço, um dos quais é a Terra.
Criam os antigos que ir aos céus era subir. A verdade, porém, é que não se sobe de um astro a outro. Estão os corpos celestes tanto abaixo como acima do nosso horizonte. Assim, supondo que, tendo vindo a Pafos, Vênus regressasse a seu planeta quando este se houvesse posto, não subiria em relação ao nosso horizonte: pelo contrário, desceria, e nesse caso deveria dizer-se descer ao céu. Porém os antigos não alcançavam tais sutilezas. Tinham noções vagas, incertas, contraditórias sobre tudo que concernia à, física. Escreveram-se volumes de légua e meia a fim de saber o que pensavam acerca de um sem número de questões que tais. Bastariam duas palavras: não pensavam.
Sempre é bom excetuar alguns sábios Mas vieram mais tarde. Poucos manifestaram seus pensamentos, e foi o quanto bastou para que os charlatães os mandassem para o céu pelo caminho mais curto.
Pretendeu um escritor, chamado, creio, Pluche, promover Moisés a grande físico. Já antes outro o conciliara com Descartes e dera à estampa o Cartesius Mosaizans. A dar-lhe ouvidos foi Moisés quem primeiro concebeu os turbilhões e a matéria sutil. É no entanto por de mais sabido que Deus, fazendo Moisés um grande legislador, um grande profeta, nem sequer lhe passou pela veneta fazê-lo professor de física. Moisés ensinou aos judeus qual era seu dever, mas não lhes disse palavra de filosofia. Calmet, que compilou às pazadas e sem nunca raciocinar, fala de sistema dos hebreus. Porém esse povo grosseiro nunca teve sistema algum. Nem sequer possuíam escola de geometria. O termo era grego para eles. Sua ciência era o ofício de corretor e a usura.
Deparam-se em seus livros algumas ideias obscuras, incoerentes, dignas em tudo por tudo de um povo bárbaro, sobre a estrutura do céu. Seu primeiro céu era o ar. O firmamento, sólido e de gelo, sustinha as águas superiores, que ao tempo do dilúvio vazaram desse reservatório por portas, esclusas e cataratas.
Acima do firmamento ou das águas superiores estava o terceiro céu ou empíreo, para onde foi arrebatado S. Paulo. Formava o firmamento uma espécie de meia abóbada continente da Terra. O Sol não girava em torno da Terra porque sequer concebiam que a terra fosse redonda. Chegando ao ocidente, voltava ao oriente por caminho desconhecido. E se não se via era em virtude de que, como disse o barão de Foeneste, desandava de noite.
Todas essas fantasias, adotaram-nas os hebreus dos outros povos. Considerava o céu a maioria das nações, tirante a escola dos caldeus, como um sólido. A Terra, fixa e imóvel, era mais longa um grande terço de oriente a ocidente que de meio dia a norte. Daí as expressões longitude e latitude, por nós perfilhadas. Claro que, desta forma, era impossível haver antípodas. Sto. Agostinho trata a ideia de antípodas de absurdo, e diz expressamente Lactâncio: “Haverá indivíduos tão estúpidos a ponto de crerem que possa haver homens de cabeça para baixo?”
Pergunta S. Crisóstomo em sua décima quarta homilia: “Onde estão os que pretendem que os céus sejam imóveis e de forma circular?”
Diz ainda Lactâncio no livro terceiro das Instituições: “Poderia demonstrar-vos com uma enfiada de argumentos que é impossível que o céu circunde a Terra”
Que diga quanto quiser o autor do Espetáculo da Natureza terem sido Lactâncio e S. Crisóstomo grandes filósofos. Responder-lhe-eis terem sido grandes santos e que para tanto não é indispensável ser bom astrônomo. Acreditá-los-eis no céu: mas força é confessardes que ignorais em que ponto precisamente.

Voltaire, in Dicionário Filosófico

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