Todo menino tinha bicho-de-pé. Eu tive
muitos. Ter um bicho-de-pé era uma felicidade...
Como é provável que a maioria dos meus
leitores nem tenha tido a felicidade de ter um bicho-de-pé no dedo
do pé e nem mesmo tenha ouvido falar desse minúsculo animal, trato
de dar as informações devidas. Trata-se de uma espécie de pulga,
nome científico Tunga penetrans, que tem especial predileção pelos
dedos dos pés. Esse gosto é específico das fêmeas, que,
penetrando sob a pele dos humanos, ali se põem a botar uma enorme
quantidade de ovos minúsculos que formam uma bolha transparente,
como se fosse de plástico, do tamanho de uma pimenta-do-reino. Essa
bolha recebe vulgarmente o nome de “batata”.
A descoberta de uma ou mais batatas nos
dedos era sempre um motivo de felicidade, por uma razão que
explicarei depois. A extração de uma batata requeria uma habilidade
protocirúrgica, ou seja, a manipulação de uma agulha de costura.
Procedia-se de forma ordenada: com a ponta da agulha ia-se cortando a
pele circularmente à volta da batata até que, completada a
operação, espetava-se a mesma no seu centro, marcado pelo ponto
negro da Tunga penetrans, para então cuidadosamente
proceder-se à conclusão da cirurgia, qual seja, puxar a batata para
fora. Sendo bem-sucedida a operação, a batata saía redonda e
inteira, sendo exibida triunfalmente como um troféu pela cirurgiã.
No seu lugar fica uma pequena cratera, cratera esta que tem uma
capacidade enorme de produzir prazer, sob a forma de coceira.
Coceira é uma coisa estranha: dor que dá
prazer. Todo mundo já teve frieira — prazer parecido com o da
batata. A gente coça até sair sangue. É provável que o mistério
do masoquismo encontre sua explicação mais profunda no prazer
doloroso da coceira. Meu irmão Murilo, por medo da agulha, não
deixava que suas batatas fossem extraídas. Mas tratava de obter o
prazer a que tinha direito por meio de um interminável
esfrega-esfrega das batatas com uma bucha.
O amor à verdade obriga-me a uma
informação desagradável: o bicho-de-pé, para existir, precisa de
sujeira. É nos chiqueiros que ele engorda. Há prazeres que
necessitam de um ambiente suíno para existir.
O bicho-de-pé, juntamente com as pulgas,
eram partes normais da vida, conviviam com os humanos. De noite as
pulgas começavam a fazer cócegas, andando sobre a pele, à procura
de um lugar propício à sua mordida hematófaga. Mas depois vieram
os inseticidas, o BHC, o Neocid, e elas se foram. Hoje só sobrevivem
em locais distantes. São animais em perigo de extinção, mas
ninguém sai em sua defesa. Os bichos-de-pé mereceriam sobreviver
pelo seu uso metafórico na educação sexual. A jovem, com medo da
noite de núpcias, perguntou à mãe se doía muito. Ao que a mãe
respondeu: “É feito bicho-de-pé. Dói um pouquinho mas depois a
gente não quer parar de esfregar...” .
Rubem Alves, in O velho que acordou menino
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