Quando eu era criança, minha imaginação
trabalhava sem freios e eu contava a meus amigos enormidades em que
eu mesmo acreditava.
— Como morreu o teu avô? —
perguntaram-me um dia meus amiguinhos da escola pública.
E eu, imediatamente, forjei um mito; e à
medida que ia forjando ia acreditando.
— Meu avô usava sapatos de borracha.
Um dia quando sua barba já estava branca, ele pulou do telhado da
nossa casa. Mas, ao tocar a terra, ele pulou como uma bola e subiu
mais alto que o telhado, e sempre mais alto, mais alto, e ele
desapareceu nas nuvens. Assim morreu meu avô.
Desde o dia em que inventei esse mito,
cada vez que eu ia à igrejinha de Santa Mina e que via, embaixo da
iconóstase, a ascensão do Cristo, eu estendia a mão e dizia a meus
colegas:
— Olhem, lá está meu avô com seus
sapatos de borracha.
Naquela noite, depois de tantos anos, ao
ver Zorba pular no ar, revivi esse conto infantil com terror, como se
acreditasse que Zorba pudesse desaparecer nas nuvens.
— Zorba! Zorba! Chega! — gritava eu.
Zorba estava agora ajoelhado no chão,
sem fôlego. Seu rosto brilhava, feliz. Seus cabelos grisalhos
estavam colados à fronte, e o suor corria sobre seu rosto e seu
queixo, misturado à poeira.
Debrucei-me sobre ele, inquieto.
— Isso me aliviou — disse ele ao fim
de um momento, como se tivesse feito uma sangria. — agora eu posso
falar.
Ele entrou no barracão, sentou-se diante
do braseiro e me olhou radiante.
— Que deu em você para se pôr a
dançar?
— Que queria você que eu fizesse,
patrão? A alegria me estrangulava, era preciso que eu espairecesse.
E como espairecer? Com palavras? Eh!
— Que alegria?
Seu rosto escureceu. Seu lábio começou
a tremer.
— Que alegria? Ora, isso tudo que você
acabou de dizer, você disse a mim, no ar, sem entender você mesmo?
Não viemos aqui em busca do carvão, você disse. Você disse por
dizer, não? Viemos aqui para passar o tempo. Vamos jogar poeira nos
olhos das pessoas, para que elas não nos tomem como malucos e não
nos joguem tomates!
Mas nós, quando estivermos a sós, sem
que ninguém nos veja, nós morreremos de rir! É isso, palavra de
honra, o que eu queria também, mas não conseguia dizer. Às vezes
pensava no carvão, às vezes na mãe Bubulina, às vezes em você...
uma confusão. Quando eu abria uma galeria, eu dizia: “O que eu
quero é o carvão.” E, dos pés a cabeça, eu virava carvão. Mas,
depois de acabado o trabalho, quando eu me esbaldava com aquela velha
porca, eu queria que todas as linhitas e patrões do mundo se
enforcassem na fitinha do seu pescoço; e Zorba também. Quando,
enfim, eu ficava sozinho, sem ter o que fazer, eu pensava em você,
patrão, e meu coração se partia.
Era um peso na minha consciência: “Que
vergonha, Zorba zombar desse homem e tomar-lhe uns tostões. Até
quando você será assim?
Basta!” — eu lhe digo, patrão, havia
perdido a cabeça. O Diabo me puxava de um lado e o bom Deus de
outro: os dois me rasgavam ao meio. Patrão, você aí falou bem, e
eu vi claro. Compreendi! Estamos de acordo. Agora, vamos fazer
coisas! Você ainda tem dinheiro? Prepare tudo, vamos raspar os
fundos!
Zorba enxugou a testa e olhou em volta.
Os restos de nosso jantar estavam ainda espalhados em cima da pequena
mesa. Ele estendeu seu grande braço:
— Com a sua permissão, patrão, eu
ainda tenho fome.
Apanhou um pedaço de pão, uma cebola e
algumas azeitonas. Comia vorazmente, e entornava em sua boca, sem
tocar nos lábios, a cabaça de vinho que ia se esvaziando. Zorba
estalou a língua, satisfeito.
— Sinto-me remoçar — disse ele.
Piscou o olho em minha direção:
— Por que não ri, patrão? —
perguntou. — por que está me olhando? Eu sou assim. Há em mim um
Diabo que grita, e eu faço o que ele diz. “Dança” e eu danço.
E isso me alivia! Uma vez, quando meu pequeno Dimitraki morreu, na
Calcídia, eu me levantei e dancei. Os parentes e amigos, ao me virem
dançar assim diante do corpo, se precipitaram sobre mim para me
fazer parar. “Zorba ficou louco!” Eles gritavam. “Zorba ficou
louco!” mas eu, se não dançasse naquele momento, aí sim eu
ficaria louco de dor. Porque ele era o meu primeiro filho e tinha
três anos, e eu não podia suportar a sua perda. Você compreende o
que estou dizendo, ou estou falando para as paredes?
— Eu compreendo, Zorba. Você não está
falando para as paredes.
— Uma outra vez... Eu estava na Rússia,
perto de Novorossisk; e eu fui até lá também, sempre por causa de
minas. Dessa vez era de cobre. Sabia cinco ou seis palavras de russo,
apenas o indispensável para viver: — sim, não, pão, água, eu te
amo, vem, quanto? Tinha ficado amigo de um russo, um bolchevique
fanático. Íamos todas as noites a uma taberna do porto, onde
tomávamos umas garrafas de vodka, e elas nos deixavam um pouco
altos. Assim que começávamos a ficar alegres, o nosso coração se
abria. Ele queria me contar, em detalhes, tudo o que havia acontecido
com ele durante a revolução russa; e eu, do meu lado, queria
dizer-lhe tudo sobre mim. Tínhamo-nos embriagados juntos, você
sabe, havíamos-nos tornado irmãos.
Com gestos, mal ou bem, nos havíamos
posto de acordo. Ele falaria primeiro. Quando eu não compreendesse
diria: Stop! Então, ele se levantaria e dançaria para mim.
Compreende, patrão, ele dançaria aquilo que queria me dizer. E eu a
mesma coisa. Tudo aquilo que não poderíamos dizer com a boca seria
dito com os pés, com as mãos, com o ventre ou com gritos selvagens:
Hau! Opa lá! Oi! — foi o russo que começou: como eles haviam
apanhado os fuzis, como começou a guerra, como eles chegaram a
Novorossisk. Quando eu não podia mais entender gritava: Stop!
Imediatamente o russo se atirava e começava a dançar! Dançava como
um possesso. E eu olhava suas mãos, seus pés, seu peito, seus olhos
e compreendia tudo: como tinham entrado em Novorossisk e matado os
patrões, como haviam pilhado as lojas, como entraram nas casas e
levaram as mulheres. No começo elas choravam, as malvadas, elas
unhavam e unhavam, mas, lentamente, iam-me deixando tomar, fechavam
os olhos, gemiam de satisfação. Mulheres, ora... — depois foi a
minha vez. Mal começava a falar e, talvez por que ele estivesse já
um pouco tocado, e seu cérebro funcionasse mal, o russo gritava:
stop! Eu não esperava senão isso. Atirava-me da cadeira, afastava
as mesas, e me metia a dançar. Ah! Meu pobre amigo! Decaíram muito
os homens! Deixaram que seus corpos ficassem mudos, e só falam com a
boca? Que pode ela dizer? Se você pudesse ver como ele me escutava,
o russo, da cabeça aos pés, e como ele me compreendia! Eu lhe
descreveria, dançando, minhas infelicidades, minhas viagens, quantas
vezes me casei, os ofícios que aprendi: carreteiro, mineiro,
carregador, oleiro, comitadji, tocador de santuri, vendedor de
passatempo, ferreiro e contrabandista; como me haviam jogado na
cadeia, como eu fugi, como cheguei à Rússia... Tudo, ele
compreendia tudo, mesmo na bebedeira em que estava. Meus pés, minhas
mãos falavam, e também os meus cabelos e roupas. Até um canivete
que estava pendurado em meu cinto falava também. Quando acabei, o
grande tolo apertou-me em seus braços, beijou-me as faces, enchemos
os copos de vodka ainda um vez, chorando e rindo, um nos braços do
outro. De manhã cedo nos separávamos e íamos dormir. E de noite
nos encontrávamos de novo. — você ri? Não acredita, patrão?
Você diz a si mesmo: que Diabo, que histórias são essas que me
contam esse Simbad o Marujo? Falar dançando, será possível? E, no
entanto, boto minha mão no fogo como deve ser assim que falam os
Deuses e os Diabos. — estou vendo que estás com sono. Você é
muito delicado, não tem resistência. Vamos dormir e amanhã
falaremos de novo. Tenho um projeto, um magnífico projeto; amanhã
eu lhe conto. Vou fumar ainda um cigarro, talvez dê um mergulho no
mar. Estou esfogueado, tenho que me acalmar. Boa noite!
Demorei a dormir. Estava acabada a minha
vida, pensei. Se eu pudesse ao menos apanhar uma esponja e apagar
tudo que havia aprendido, tudo que havia visto e ouvido e, depois,
entrar para a escola de Zorba e começar a grande e verdadeira
cartilha! Como seria diferente o caminho que escolheria na vida! Eu
exerceria perfeitamente meus cinco sentidos, minha pele inteira, para
que ela gozasse e compreendesse. Eu aprenderia a correr, lutar,
nadar, montar a cavalo, remar, dirigir automóvel, atirar com
espingarda.
Encheria minha alma com a carne. Encheria
com carne a minha alma. Conciliaria em mim, finalmente, esses dois
inimigos seculares...
Sentado sobre meu chão, pensava em minha
vida que se ia, em pura perda. Pela porta aberta, distinguia
confusamente, à claridade das estrelas, Zorba acocorado sobre um
rochedo como um pássaro noturno. Eu o invejava. Foi ele que
encontrou a verdade, pensei; este é o bom caminho!
Em outras épocas, criadoras e
primitivas, Zorba teria sido chefe de tribo, e marcharia na frente,
abrindo o caminho com seu machado.
Ou então seria um trovador de renome, a
visitar os castelos; e todo o mundo estaria preso a seus lábio
grossos: senhores, empregadas e nobres damas... Em nossa época
ingrata, ele vaga, esfomeado, à volta dos cercados como um lobo, ou
bem decai ao ponto de ser o jogral de um arranhador de papéis
qualquer.
De repente vi Zorba levantar-se.
Despiu-se, jogou suas roupas ao chão e atirou-se ao mar. Via por
instantes, à luz fraca da lua que nascia, sua grande cabeça imergir
e desaparecer de novo. De vez em quando ele gritava, latia, zurrava,
imitava o canto do galo — sua alma nessa noite deserta voltava-se
para os animais.
Nikos Kazantzakis, in Zorba, O Grego
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