quinta-feira, 13 de maio de 2021

Uma agulha

Alguns textos neste livro são verdadeiros, mas parecem falsos; outros são falsos, mas parecem verdadeiros. Outros, ainda, misturam as duas categorias, propondo uma espécie de indistinção entre elas. O caso que se conta aqui, entretanto, é totalmente verdadeiro, embora seja difícil acreditar que ele realmente aconteceu.
Gosto muito de Horacio Quiroga, esse autor uruguaio/argentino, de vida trágica e ficção não menos terrível, que criou um tipo de linguagem em que o leitor não sabe se está a ler contos de terror ou tratados científicos. Em seus contos, ele consegue de tal forma confundir objetividade e absurdo que o impacto de suas histórias se amplia por uma sensação do mais puro realismo. E dentre todas elas, uma das mais conhecidas, não à toa, é “A galinha degolada”, que também dá nome a um de seus livros. Nesse conto, um casal jovem e apaixonado, para completar sua felicidade, dá à luz um menino forte e saudável. Tudo corre às mil maravilhas, até que no décimo sétimo mês — e aqui estou certa dessa contagem, mas faço questão de me manter numa margem de incerteza, porque, por mais que já tenha relido o conto algumas vezes depois do que me aconteceu, a literatura de Quiroga é tão movediça que quero ficar nessa bruma de indefinição, como se ela fosse a atitude mais coerente e respeitosa para com o autor — começa a se desenvolver uma doença no menino. Ele vai se tornando imóvel e alheio a tudo e os pais o entregam aos cuidados de uma criada, desesperados. Depois de algum tempo, decidem dar nova chance ao destino e têm um outro bebê, a quem enchem de cuidados, temendo a repetição da doença. E, aos dezessete meses, novamente ela se manifesta, condenando o segundo filho também ao mutismo e ao isolamento. O casal, quase sem esperanças e com seu relacionamento em frangalhos, resolve ter ainda mais um filho, com quem a história se repete, nas mesmas condições e prazo. E ainda com um quarto, deixando o casal em estado de total desolação. Aos poucos, os pais dos meninos abandonam os filhos à própria sorte. Os quatro ficam o dia inteiro sentados no quintal, em frente a um muro, calados, somente sensíveis à luz do sol e às cores, que os afetam visivelmente. Depois de alguns anos, o casal tem uma menina, a quem, obviamente, tratam como uma princesa e que não apresenta a doença. Finalmente, certa paz parece retornar ao lar e os pais acreditam que podem ser felizes de novo. Esquecem-se completamente dos rapazes, inclusive deixando-os sujos e desamparados. Um dia, a cozinheira da casa, ao preparar uma galinha para o almoço, degola-a na frente dos quatro irmãos, que observam o ato, impressionados com a vermelhidão do sangue que escorre de seu pescoço, chegando até o quintal. Na cena seguinte, os pais e a menina estão retornando de um passeio e a garota se solta das mãos de ambos para correr para o quintal, onde ela sobe no muro para espiar algo na casa vizinha. Novamente, não tenho certeza absoluta da sequência dos fatos, nem mesmo do que ela foi procurar ali no muro. Os irmãos se entreolham e, como que tacitamente, tomam uma decisão silenciosa. Puxam-na para baixo e, sem demora, degolam-na como havia sido feito à galinha. Os pais, dando-se conta do sumiço da menina, começam a chamá-la, mas, quando desconfiam do que pode ter acontecido, já é tarde demais.
No conto não há uma condenação do gesto dos irmãos e creio que tampouco do descuido dos pais, embora esta última alternativa seja mais plausível. O que fica, como nos outros contos de Quiroga, é uma constatação sobre a imponderabilidade do trágico.
Poucos dias depois da leitura dessa história, precisei fazer uma viagem ao exterior. Estava no saguão do aeroporto, aguardando a chamada para o embarque, quando, a pouca distância de mim, avistei um rapaz jovem e forte se aproximando de um homem que parecia ser seu pai. Ele o abraçou carinhosamente e foi correspondido. Quando eles se viraram, vi que o garoto era portador de síndrome de Down, lembrei-me do conto e me alegrei de ele ser tratado com tanto afeto. Pouco tempo depois, outro rapaz aproximou-se da dupla e, da mesma forma, abraçou o pai. Vi que ele tinha a mesma característica e fiquei ainda mais admirada, para, em seguida, surgir ainda um terceiro, também portador da síndrome, comportando-se da mesma forma. Não podia acreditar. Um pai e três filhos especiais, todos abraçando-se e demonstrando camaradagem. Não imaginava que isso pudesse existir, ainda mais porque aquele homem parecia estar viajando sozinho com os garotos.
Na cadeira ao meu lado, um homem estava com um livro aberto fazia algum tempo. Sempre que percebo alguém lendo perto de mim em espaços públicos, coisa cada vez mais rara, gosto de espionar qual é o livro, como se isso pudesse estabelecer um tipo de pacto entre nós. Mas mal pude crer quando vi que a leitura era “A galinha degolada”, e não apenas o livro, mas o próprio conto. A cena até certo ponto similar à história de Quiroga — mas invertendo o aspecto trágico — se passava empiricamente, à minha frente e, literariamente, ao meu lado.
Fiquei sem saber o que sentir, pensar, como interpretar, assim que recuperei parte dos sentidos. Aquilo estava mesmo acontecendo? Será que eu estava dentro de uma história de Borges, dentro de um espelho, existiria mesmo o eterno retorno nietzschiano, será que eu estava afetada pelas muitas histórias que vinha lendo, como uma Bovary desqualificada? Ou seria tudo um sonho, do qual eu iria logo despertar, ou então não, meus sonhos noturnos é que eram reais e todo o resto é falso e a vida não passa de uma narrativa mal escrita? Aquilo tudo poderia ser um aviso, um sinal enviado por deuses ociosos, uma brincadeira inconsequente do destino em que não acredito. Mas sinal de quê e por quê?
Não. Era tudo não mais do que uma coincidência muito implausível, mas, ainda assim, uma coincidência.
Porém, mal chegando a essa conclusão pragmática e frustrante, fui levada a refletir sobre o significado das coincidências e passei o resto da viagem, movida por aquelas duas cenas, pensando sobre isso.
Seria uma tentativa pueril de explicar o inexplicável ou uma forma madura e lúcida de compreender os significados dos eventos, de sua multiplicidade?
Um pai, três filhos, o saguão de um aeroporto, eu a olhá-los, um homem lendo “A galinha degolada”, alguns dias depois de eu ter lido o conto de Horacio Quiroga.
Não sei aproveitar essa agulha que o tempo ofereceu e nela enfiar algum fio, costurar alguma história. Na verdade, não quero.
Vou deixar essa coincidência para a enciclopédia inexistente dos mistérios esquisitos, que, como o nome diz, não existe. Mas é lá que ele vai ficar.

Noemi Jaffe, in Não está mais aqui quem falou

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