quinta-feira, 27 de maio de 2021

Pequeno manual antirracista / Introdução

 

Quando criança, fui ensinada que a população negra havia sido escrava e ponto, como se não tivesse existido uma vida anterior nas regiões de onde essas pessoas foram tiradas à força. Disseram-me que a população negra era passiva e que “aceitou” a escravidão sem resistência. Também me contaram que a princesa Isabel havia sido sua grande redentora. No entanto, essa era a história contada do ponto de vista dos vencedores, como diz Walter Benjamin. O que não me contaram é que o Quilombo dos Palmares, na serra da Barriga, em Alagoas, perdurou por mais de um século, e que se organizaram vários levantes como forma de resistência à escravidão, como a Revolta dos Malês e a Revolta da Chibata. Com o tempo, compreendi que a população negra havia sido escravizada, e não era escrava—palavra que denota que essa seria uma condição natural, ocultando que esse grupo foi colocado ali pela ação de outrem.
Se para mim, que sou filha de um militante negro e que sempre debati essas questões em casa, perceber essas nuances é algo complexo e dinâmico, para quem refletiu pouco ou nada sobre esse tema pode ser ainda mais desafiador. O processo envolve uma revisão crítica profunda de nossa percepção de si e do mundo. Implica perceber que mesmo quem busca ativamente a consciência racial já compactuou com violências contra grupos oprimidos.
O primeiro ponto a entender é que falar sobre racismo no Brasil é, sobretudo, fazer um debate estrutural. É fundamental trazer a perspectiva histórica e começar pela relação entre escravidão e racismo, mapeando suas consequências. Deve-se pensar como esse sistema vem beneficiando economicamente por toda a história a população branca, ao passo que a negra, tratada como mercadoria, não teve acesso a direitos básicos e à distribuição de riquezas.
É importante lembrar que, apesar de a Constituição do Império de 1824 determinar que a educação era um direito de todos os cidadãos, a escola estava vetada para pessoas negras escravizadas. A cidadania se estendia a portugueses e aos nascidos em solo brasileiro, inclusive a negros libertos. Mas esses direitos estavam condicionados a posses e rendimentos, justamente para dificultar aos libertos o acesso à educação.
Havia também a Lei de Terras de 1850, ano em que o tráfico negreiro passou a ser proibido no Brasil—embora a escravidão tenha persistido até 1888. Essa lei extinguia a apropriação de terras com base na ocupação e dava ao Estado o direito de distribuí-las somente mediante a compra. Dessa maneira, ex-escravizados tinham enormes restrições, pois só quem dispunha de grandes quantias poderia se tornar proprietário. A lei transformou a terra em mercadoria ao mesmo tempo que facilitou o acesso a antigos latifundiários—embora imigrantes europeus tenham recebido concessões, como a criação de colônias.
Quando estudamos a história do Brasil, vemos como esses e outros dispositivos legais, estabelecidos durante e após a escravidão, contribuem para a manutenção da mentalidade “casa-grande e senzala” no país em que, nas senzalas e nos quartos de empregada, a cor foi e é negra. A psicanalista Neusa Santos, autora de Tornar-se negro, de 1983, um dos primeiros trabalhos sobre a questão racial na psicologia, afirma que:

a sociedade escravista, ao transformar o africano em escravo, definiu o negro como raça, demarcou o seu lugar, a maneira de tratar e ser tratado, os padrões de interação com o branco e instituiu o paralelismo entre cor negra e posição social inferior.

No Brasil, há a ideia de que a escravidão aqui foi mais branda do que em outros lugares, o que nos impede de entender como o sistema escravocrata ainda impacta a forma como a sociedade se organiza. É necessário reconhecer as violências ocorridas durante o período escravista. Historiadores como Lilia Schwarcz, Flávio Gomes, João José Reis e Nizan Pereira Almeida já comprovaram que essa ideia não passa de um mito. São inúmeros os fatos históricos que a desmentem. Basta lembrar, por exemplo, que a expectativa de vida dos homens escravizados no campo era 25 anos, bem abaixo da média dos Estados Unidos para o mesmo grupo, 35 anos.
Movimentos de pessoas negras há anos debatem o racismo como estrutura fundamental das relações sociais, criando desigualdades e abismos. O racismo é, portanto, um sistema de opressão que nega direitos, e não um simples ato da vontade de um indivíduo. Reconhecer o caráter estrutural do racismo pode ser paralisante. Afinal, como enfrentar um monstro tão grande? No entanto, não devemos nos intimidar. A prática antirracista é urgente e se dá nas atitudes mais cotidianas. Como diz Silvio Almeida em seu livro Racismo estrutural:

Consciente de que o racismo é parte da estrutura social e, por isso, não necessita de intenção para se manifestar, por mais que calar-se diante do racismo não faça do indivíduo moral e/ou juridicamente culpado ou responsável, certamente o silêncio o torna ética e politicamente responsável pela manutenção do racismo. A mudança da sociedade não se faz apenas com denúncias ou com o repúdio moral do racismo: depende, antes de tudo, da tomada de posturas e da adoção de práticas antirracistas.

Portanto, nunca entre numa discussão sobre racismo dizendo “mas eu não sou racista”. O que está em questão não é um posicionamento moral, individual, mas um problema estrutural. A questão é: o que você está fazendo ativamente para combater o racismo? Mesmo que uma pessoa pudesse se afirmar como não racista (o que é difícil, ou mesmo impossível, já que se trata de uma estrutura social enraizada), isso não seria suficiente—a inação contribui para perpetuar a opressão.
É preciso ressaltar que mulheres e homens negros não são as únicas vítimas de opressão estrutural: muitos outros grupos sociais oprimidos compartilham experiências de discriminação em alguma medida comparáveis. Este livro foca em estratégias para combater o racismo contra pessoas negras, mas espero que, se possível, ele possa contribuir também para o combate a outras formas de opressão.
O objetivo deste pequeno manual é apresentar alguns caminhos de reflexão—recuperando contribuições importantes de diversos autores e autoras sobre o tema—para quem quiser aprofundar sua percepção de discriminações estruturais e assumir a responsabilidade pela transformação de nossa sociedade. Afinal, o antirracismo é uma luta de todas e todos.

Djamila Ribeiro, in Pequeno manual antirracista

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